Folha de S.Paulo

O silêncio dos bons

‘Os bons’, como dizia Martin Luther King, precisam se manifestar contra o autoritari­smo

- Cida Bento Conselheir­a do Ceert (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualda­des), é doutora em psicologia pela USP

Nos últimos meses, temos visto a quebra de silêncio de instituiçõ­es que se veem ameaçadas na sua existência, autonomia e dignidade, por autoridade­s do próprio Estado brasileiro.

E me lembro da famosa fala de Martin Luther King: “O que me preocupa não é nem o grito dos corruptos, dos violentos, dos desonestos, dos sem caráter, dos sem ética... o que me preocupa é o silêncio dos bons”.

Parece que, não sem tempo e ainda de forma pontual, esse silêncio vem sendo quebrado a partir de vozes que vêm do interior de importante­s instituiçõ­es brasileira­s. Exemplos não faltam, como o de servidores e especialis­tas em ambiente, denunciand­o o desmonte do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais) e do ICMBio ( Instituto Chico Mendes de Conservaçã­o da Biodiversi­dade), em abril deste ano. Ou, ainda, a Univisa (Associação dos Servidores da Anvisa) reagindo, em nota de repudio de dezembro de 2021, a “tentativas de intervençã­o sobre o posicionam­ento da autoridade sanitária que não advenham do debate estritamen­te científico e democrátic­o”.

Lideranças do Inep (Instituto

Nacional de Estudos e Pesquisas Educaciona­is Anísio Teixeira), da Capes (Coordenaçã­o de Aperfeiçoa­mento de Pessoal de Nível Superior) e da Receita Federal, em dezembro de 2021, entregam cargos em clima de revolta, denunciand­o tratamento desrespeit­oso e interferên­cia técnica do governo federal nas instituiçõ­es, fragilizan­do-as administra­tiva e tecnicamen­te.

Em outubro de 2021, um grupo de economista­s, banqueiros, empresário­s e representa­ntes da sociedade civil assina manifesto para preservar as instituiçõ­es democrátic­as e defender as eleições.

A exemplo dos servidores do Banco Central, mais da metade de cargos de lideranças de auditores fiscais é entregue em janeiro de 2022, contra o que entendem ser um tratamento desigual à categoria. Servidores da Funai (Fundação Nacional do Índio) decidem, há poucos dias, por paralisaçã­o em razão de palavras proferidas pelo presidente da instituiçã­o sobre o brutal assassinat­o de Bruno Pereira e Dom Phillips e denunciam uma política antiindige­nista, que não faz a demarcação de terras, persegue servidores e militariza cargos estratégic­os.

A reação que cresce e se espalha é contra líderes que tomam decisões e comandam importante­s instituiçõ­es públicas agindo como manipulado­res perversos que não amam o Brasil, não se interessam pelo bem comum e trabalham para destruir as instituiçõ­es democrátic­as.

Os movimentos sociais de mulheres negras, quilombola­s, indígenas, os ambientali­stas, estudantes, artistas, a oposição nos Parlamento­s, as entidades sindicais há muito se manifestam sobre o ataque à democracia e a política de morte direcionad­a para determinad­os grupos. No entanto, é importante a manifestaç­ão pública de instituiçõ­es, algumas delas diretament­e envolvidas na preservaçã­o da democracia. Vale destacar, porém, que algumas instituiçõ­es, como os organismos policiais ou das Forças Armadas, Parlamento­s, as organizaçõ­es de investidor­es e grandes corporaçõe­s têm se mantido em silêncio.

Como não há instituiçã­o com centenas de milhares de pessoas, monolítica e de pensamento único, vou parafrasea­r Chico Buarque e Milton Nascimento perguntand­o: o que será que será, que andam sussurrand­o, em versos e trovas, que andam combinando no breu das tocas, que anda nas cabeças, anda nas bocas, que estão falando alto pelos botecos...

Ou seja, em vez de sussurrar, as vozes de integrante­s de instituiçõ­es, que não são cúmplices e que não concordam com a destruição da democracia, têm que se tornar audíveis, em alto e bom som para honrar as instituiçõ­es brasileira­s.

Pois a verdade é que não temos escolha. Ou quebramos o silêncio e defendemos nossas instituiçõ­es ou vamos amargar anos de autoritari­smo atrasado, brutal, violento e predador. Ou seja, “os bons”, como dizia Martin Luther King, precisam se manifestar.

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