Folha de S.Paulo

Antologia de poetas da faixa de Gaza desafia os estereótip­os sobre a região

Apesar de conflitos, poemas reunidos no livro não falam ao mundo com voz de quem é só vítima

- Diogo Bercito Gaza, Terra da Poesia Org.: Muhammad Taysir. Ed.: Tabla. R$ 30 (120 págs.)

WASHINGTON Gaza é uma ilha às margens. A imagem aparece quando o professor Michel Sleiman, da Universida­de de São Paulo, fala sobre uma antologia de poetas desse território. Uma ilha, diz, porque a faixa de Gaza está cercada por Israel e pelo Egito, e a circulação de pessoas é quase impossível. Às margens, continua, porque até hoje suas vozes estão abafadas —mesmo quando se ouvem os palestinos, são em geral aqueles que vivem em outro lugar, na Cisjordâni­a.

O livro “Gaza, Terra da Poesia” é uma brecha nesse cerco, uma ponte ligando leitores à ilha. A obra, que chega ao Brasil pela Tabla, reúne textos de 17 poetas nascidos na faixa de Gaza, em sua maioria jovens.

“É uma garotada que mostra que, à revelia, existe uma vida literária ali”, Sleiman afirma.

Essa ideia é de contracorr­ente, visto que mesmo no mundo de língua árabe persiste a ideia de que Gaza é um território intelectua­lmente árido onde só florescem radicalism­os religiosos. A faixa é hoje governada pela facção Hamas, considerad­a terrorista por Israel e pelos Estados Unidos. A maior parte da rara atenção é dada a poetas de outras regiões palestinas, como Jerusalém e a Cisjordâni­a, governada pela facção Fatah e, em larga medida, ocupada pelas forças israelense­s.

A tese da antologia, organizada por Muhammad Taysir, é de que existe, sim, poesia em Gaza. “Ainda que esses autores não estejam conectados em torno de um coletivo literário, são vozes que ecoam uma na outra”, afirma Sleiman. “Há uma geração de bons poetas, talvez forjados pela vida dura. Não são apenas vozes soltas. No conjunto, eles estão falando sobre as mesmas coisas.”

O projeto da antologia chegou à editora Tabla pelas mãos da professora da USP e tradutora veterana Safa Jubran. O livro saiu em Beirute no final de 2021 e ainda não foi traduzido para nenhuma outra língua além do português.

Toda a receita vai ser revertida para a organizaçã­o sem fins lucrativos Tamer, que incentiva a leitura nos território­s palestinos, incluindo Gaza.

Esse ineditismo marca o amadurecim­ento do mercado editorial brasileiro em árabe que, impulsiona­do pela Tabla e pela formação de jovens tradutores, tem disponibil­izado obras importante­s da região —como os textos de Mahmud Darwich, que é a principal voz da poesia palestina.

A antologia foi vertida pelo grupo de tradução da poesia árabe contemporâ­nea da USP, sob coordenaçã­o de Sleiman, que assina uma das traduções, assim como Jubran.

Há uma série de traços em comum entre os autores de “Gaza, Terra da Poesia”, Sleiman diz. Em termos de forma, está claro que esses poetas não estão preocupado­s com coisascomo­amétricaea­rima.

Gerações anteriores discutiram qual era, afinal, a forma da poesia em árabe. Os poetas da antologia, porém, passam por essa conversa sem olhar para trás. “Eles falam, apenas isso”, diz. “Há uma predileção pelo poema em prosa. O verso termina onde termina a ideia. É quase como se o verso livre fosse o ponto de partida dado deles. Não há a sugestão de novas formas.”

Já no tema os poetas se parecem em sua predileção pelo cotidiano —a vida na escola, a passagem à maturidade, a primeira menstruaçã­o, a descoberta da sexualidad­e. “Está ali, também, o retrato de uma vida difícil e de uma desesperan­ça com a situação”, diz Sleiman.

Sitiada, Gaza tem difícil acesso à ajuda humanitári­a. Nos últimos anos, Israel bombardeou a faixa várias vezes, destruindo vidas e a infraestru­tura. Falta de tudo, inclusive educação. “É um ambiente que tem pouco a oferecer”, afirma.

Nem por isso os poemas de “Gaza, Terra da Poesia” tratam da guerra diretament­e ou falam ao mundo com a voz de quem é apenas vítima. “Esses poetas são fruto da guerra, mas recusam a violência”, afirma Sleiman. “Estão buscando saídas, e os poemas são essa sua alternativ­a de vida.”

De certa maneira, Laura di Pietro, editora da Tabla, vê o livro como uma intervençã­o no debate. O próprio título tem esse impacto de desafiar os estereótip­os de que seja uma terra de conflitos. A antologia sugere que Gaza é, na verdade, uma terra de poesias, de gente que vê o belo mesmo no feio.

“Apesar de tudo, dessa coisa horrível, da ocupação israelense, do embargo, apesar de tudo, existe cultura”, diz. “As pessoas estão fazendo literatura, poesia. Há gente vivendo ali.”

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Google Arts and Culture/Reprodução ‘Blood Money’, obra da artista palestina Laila Shawa da série ‘Walls of Gaza’, de 1994
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