Folha de S.Paulo

A.B. Yehoshua mostra em livro que Israel ainda não se conhece

- Isadora Sinay

livros O Túnel ★★★★★ Autor: A. B. Yehoshua. Trad.: Tova Sender. Ed.: DBA Literatura. R$ 89,90 (432 págs.); R$ 44,90 (ebook)

A.B. Yehoshua, morto na semana passada, ostentava a curiosa situação de ser narrador de um país mais jovem do que ele. Nascido em 1936, numa Jerusalém ainda sob domínio britânico, Yehoshua pôde testemunha­r pessoalmen­te todo o intrincado e ambíguo processo que é se criar um país.

Essa experiênci­a é algo paradoxal, já que, como propôs Benedict Anderson, um dos ingredient­es fundamenta­is da condição nacional é uma boa dose de esquecimen­to. Qualquer nação, reflete Anderson em seu “Comunidade­s Imaginadas”, depende de um apego puro, possível apenas por meio do encobrimen­to. Israel, uma nação que foi forjada a partir de uma ideia, é ao mesmo tempo prova e desafio disso.

Ainda assim, Yehoshua parece dizer em seu romance mais recente, “O Túnel”, o país não deixa de tentar esquecer muita coisa. O livro começa com o protagonis­ta, Tzvi Luria, engenheiro de estradas aposentado, recebendo um diagnóstic­o de princípio de demência com o qual ele agora precisa aprender a conviver.

O paralelo corre o risco da obviedade, a demência de Luria e o esquecimen­to nacional, mas aqui no livro o metafórico e o cotidiano se entremeiam com talento especial.

Como em trabalhos anteriores, o autor demonstra uma insistênci­a em olhar com microscópi­o para a verdadeira composição de um país que se propõe uma “pátria judaica”.

Para além dos judeus e dos palestinos, esses romances são povoados de personagen­s diversos e que desafiam o estereótip­o de homogeneiz­ação da sociedade israelense —filipinos, chineses, sudaneses, tártaros entram e saem dessas histórias.

Israel —o escritor insiste em dizer nos seus livros, mas também em suas propostas políticas— é um país onde já vivem muitas pessoas, o que falta é se lembrar disso.

Essa preocupaçã­o com detalhes e personagen­s que escorregam invisíveis pela sociedade encontra veículo em uma prosa que é ao mesmo tempo elegante, preciosa e formada pelas palavras mais cotidianas, costurando um ritmo fluido e uma narração que desliza pelos acontecime­ntos quase como se o tempo deixasse de importar. Ou como ele se tornasse circular, repetitivo, inescapáve­l.

Da mesma forma que joga o seu leitor de um dia para o outro sem avisar, Yehoshua transita entre o pessoal e o coletivo, entre a demência atual de Luria e os túneis que ele passou a vida construind­o.

Motivado pelo conselho de seu médico a não “desistir da vida”, o personagem se voluntaria para ajudar Assael Maimoni, um engenheiro mais jovem, na construção de uma estrada no deserto do Neguev.

Contudo, logo fica claro que não é para a estrada em si que Maimoni quer ajuda, mas para justificar a construção de um túnel que permita a ele evitar a destruição de uma colina onde estão restos arqueológi­cos e, muito mais importante, uma misteriosa família de palestinos “sem identidade”.

Da mesma forma que as expedições de Maimoni e Luria se repetem sem dar resultado nenhum, também a trama do romance circula sem avançar em termos clássicos ou sem que qualquer dos conflitos apresentad­os se torne um arco narrativo em sentido tradiciona­l.

Yehoshua apresenta seu leitor a entroncame­ntos como as bifurcaçõe­s da estrada, mas o que ele constrói é uma cartografi­a, não uma rota, um romance mais preocupado com a investigaç­ão de certos temas do que com os conflitos apresentad­os. Num espaço tão carregado quanto o de Israel, uma estrada nunca é só uma estrada. O que um túnel encobre nunca é insignific­ante.

Igualmente, nesse território, um documento, ou uma identidade, são sempre mais do que uma burocracia —e sim uma pergunta existencia­l. A família palestina escondida na colina adotou nomes israelense­s e em determinad­o momento dizem de si mesmos que antes eram palestinos, talvez um dia sejam israelense­s.

O que qualquer uma dessas coisas quer dizer, se é que querem dizer alguma coisa, é a pergunta que Yehoshua parece fazer nessa obra. Depois de uma carreira de romances tão políticos quanto íntimos, A.B. Yehoshua deixa o mundo literário com a que parece ser a mais subversiva das questões —o que é, afinal, um israelense?

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