Folha de S.Paulo

Streaming traz a formidável obra de Billy Wilder

Da fase amarga às comédias com Marilyn Monroe, filmes do cineasta nas diversas plataforma­s merecem ser revistos

- Inácio Araujo

Na sala de trabalho, na parede bem em frente à escrivanin­ha, Billy Wilder mantinha, enquadrada, a frase que define grande parte de seus filmes —“como Lubitsch teria feito isso?”. A frase, na versão contada por um biógrafo, foi vista por ele mesmo quando entrevista­va Wilder. E Wilder já tinha mais de 80 e uma carreira para ninguém botar defeito.

Ainda assim, é a frase que justifica a permanênci­a de sua obra. Basta ver o presente — cerca de 20 de seus filmes estão sendo exibidos nos mais diversos serviços de streaming.

O Belas Artes à la Carte faz um belo esforço trazendo filmes da primeira fase americana do diretor —“Crepúsculo dos Deuses”, “Pacto de Sangue”, “Farrapo Humano”, “Cinco Covas no Egito”, “A Montanha dos Sete Abutres”, além de uma das maiores obrasprima­s sobre Hollywood.

Esse streaming traz duas preciosida­des de Ernst Lubitsch escritas por Wilder em colaboraçã­o com Charles Brackett — “A Oitava Esposa de Barba-Azul” e “Ninotchka”.

Por falar em Charles Brackett, convém passar pelo documentár­io “Billy Wilder: Ninguém É Perfeito”, no Globoplay, que fala, entre outras, da convivênci­a dele com Brackett. O primeiro, um judeu vienense e de esquerda. O segundo, nascido nos Estados Unidos, conservado­r e antissemit­a. Isso não os impediu de colaborare­m durante 14 anos. A colaboraçã­o se dava entre berros e atritos, mas ninguém pode dizer que não funcionava.

Convém assinalar que essa é a fase mais dura da obra do cineasta, marcada pelo sarcasmo e pelo amargor, pela pouca crença no humano. “Crepúsculo dos Deuses” é o filme que mais derruba o mito de “Hollywood, terra dos sonhos”.

Não há sonho possível. Isso está na figura de Gloria Swanson, que faz uma amarga exestrela do cinema mudo —isto é, exatamente o que era Gloria Swanson. E o aspirante a roteirista William Holden acaba morto numa piscina. Mas isso está longe de ser o pior —bem pior foi ser reduzido a gigolô da exigente mulher.

Wilder era um refugiado do nazismo, perdeu familiares nos campos de concentraç­ão. “A Montanha dos Sete Abutres” e “Inferno Número 17” seguem igualmente sombrios.

O tom começa a mudar com “Sabrina” —disponível na Amazon, no iTunes e na loja da Microsoft—, um “água com açúcar” de muito sucesso, entre outras pela inesperada sintonia que Wilder conseguiu construir entre William Holden, Humphrey Bogart e Audrey Hepburn. Mas não é o melhor de nenhum dos três.

Uma mudança profunda se anuncia logo a seguir, em 1955, quando “O Pecado Mora ao Lado” —disponível no Star+— marca seu encontro com Marilyn Monroe. Ela, como se sabe, não era fácil. À parte os atrasos, havia a inconstânc­ia, a inseguranç­a.

Wilder conta que ela era capaz de filmar de primeira uma cena com duas páginas de diálogos, mas de empacar diante de uma simples frase, como aconteceu em “Quanto Mais Quente Melhor”, disponível em Telecine, Globoplay, Oi Play e MGM via Amazon, quando o diretor teve de repetir 65 vezes a tomada em que ela tinha de dizer, simplesmen­te “where is the bourbon?”, ou “onde está o uísque?”, porque ela empacava, esquecia, “dava branco”.

Se “O Pecado Mora ao Lado” foi prejudicad­o pela censura, “Quanto Mais Quente” se afirma como uma das melhores comédias de todos os tempos. E marca o início do ápice de sua colaboraçã­o com o roteirista I.A.L. Diamond.

O registro mudou um pouco em seguida, para algo que se pode chamar de agridoce em filmes como “Se Meu Apartament­o Falasse”, disponível em MGM e iTunes, e “Irma La Douce” —não disponível.

Agridoce também, quase um retorno à fase do pós-Guerra, é “Testemunha de Acusação”, no iTunes e na Amazon, formidável encontro entre Marlene Dietrich e Charles Laughton.

Mas convém rever alguns filmes tidos como menores que estão circulando, “Beijame Idiota” —com uma formidável Kim Novak—, o amargo “Fedora” e o formidável canto de cisne “Amigos, Amigos, Negócios à Parte”, sua despedida da dupla Jack LemmonWalt­er Matthau, que ajudou a celebrizar desde “Uma Loura por um Milhão”, no MGM, via Amazon, de 1956, passando pela terceira e imperdível versão de “A Primeira Página”.

Alguns de seus trabalhos menores estão fora de circulação (“Avanti! Amantes à Italiana”) ou podem passar em branco sem prejuízo, como “A Vida Privada de Sherlock Holmes”, no MGM, e, que Deus nos proteja, o entojo que é “A Águia Solitária”, no iTunes.

Que dizer? O óbvio desde que veio ao mundo a frase final de “Quanto Mais Quente Melhor” —ninguém é perfeito. Mesmo um mestre podia se enganar, mas poucos são aqueles cujos filmes quase sempre podem ser revistos com prazer.

Ou que ficaram fora do circuito e de repente emergem, como “Mauvaise Graine”, na Mubi, que rodou quando estava fugindo da Alemanha.

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Reprodução O cineasta Billy Wilder, diretor de ‘Crepúsculo dos Deuses’

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