Folha de S.Paulo

‘Suor-de-alambique’, a cachaça foi protagonis­ta em revoltas populares

- Daniel de Mesquita Benevides folha.com/geloegim

O grande Câmara Cascudo define: “É a bebida-do-povo, áspera, rebelada, insubmissa aos ditames do amável paladar [...], atrevendo-se a enfrentar o vinho português soberano [...], é o líquido saudador de Zumbi dos Palmares”.

“Prelúdio da cachaça” é breve, mas nos dá muito. Conta, por exemplo, como soldados na Guerra do Paraguai e em Canudos misturavam pólvora à cachaça para ganhar coragem. Ou para ganhar a covardia necessária para o massacre.

Parati, vergonha, dengosa, meu-consolo ou suor-dealambiqu­e, a cachaça batizou sua própria revolta. Aconteceu em 1660. Para favorecer o vinho do Porto e da Madeira, a Coroa portuguesa impunha proibições ou taxas pesadas à produção da caninha. Cerca de 112 alambiquei­ros cariocas se insurgiram. Com apoio popular, tomaram o governo do Rio e convocaram novas eleições. Mas ao fim de cinco meses foram derrotados, e seu líder degolado.

O episódio dá nome a uma peça de Antônio Callado, parte da chamada tetralogia do teatro negro do escritor. Escrita em 1958, traz para a cena um dramaturgo de sucesso, sua mulher —ambos brancos— e um famoso ator negro. Ao fundo, tinindo, um tonel de fina aguardente, presente deste último.

O ator cobra do amigo o prometido papel de protagonis­ta, personagem já esboçado, numa peça que havia ficado por anos na gaveta, com o mesmo nome daquela que estamos vendo/lendo. Ambrósio se diz cansado de ser “criado, ladrão, bicheiro ou chofer”. A cachaça, no “tonel vingativo”, é o símbolo da sua revolta.

Era uma homenagem a Grande Otelo e expressão de repúdio à prática do black face nas primeiras encenações da obra anterior de Callado, “Pedro Mico”. O Otelo Ambrósio, figura trágica, lembra que Anchieta já fazia teatro e que até hoje não existe “preto-protagonis­ta que é crioulo mesmo”. Só branco pintado. Sintomatic­amente, a peça ficou inédita até 1983.

Chamado por Hélio Pellegrino de “o doce radical”, Antônio Callado fazia ficção de alta qualidade com alto teor de conscienti­zação social, política e ambiental.

Correspond­ente estrangeir­o, trabalhou em Londres durante a Segunda Guerra e foi à selva queimada de napalm no Vietnã do Norte. Acompanhou de perto as Ligas Camponesas de Francisco Julião, o trabalho de Paulo Freire e a luta pelos direitos indígenas, que descreveu em parte no romance “Quarup”.

Foi preso duas vezes na ditadura, uma delas ao lado de Caetano e Gil. E estava em Bogotá em 1948, quando três balas de pistola impediram a Colômbia de ter seu primeiro presidente de esquerda. Favorito nas pesquisas, o socialista Jorge Eliécer Gaitán foi assassinad­o quando saía do escritório para encontrar-se com um jovem Fidel Castro e outras lideranças estudantis.

Dizia, com convicção: “Yo no soy un hombre, soy el pueblo”. A reação das massas foi imediata, numa das maiores revoltas já vistas neste hemisfério, conhecida como Bogotazo. A repressão se estendeu por anos, com milhares de mortos.

A vitória do ex-guerrilhei­ro Gustavo Prieto e da advogada Francia Márquez, ex-doméstica de ascendênci­a africana, retoma o projeto de Gaitán, de uma representa­ção autenticam­ente popular.

Como Dom e Bruno, e de certa forma Callado, Márquez enfrentou a mineração ilegal na Amazônia e a ameaça à sobrevivên­cia das culturas indígenas. Merecem centenas de milhões de brindes. Com a insubmissa cachaça de Zumbi.

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De Leonidas/adobe stock

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