Folha de S.Paulo

Direito abortado

- Hélio Schwartsma­n helio@uol.com.br

A decisão de revogar Roe vs Wade, o precedente da Suprema Corte de 1973 que estabelece­ra o direito ao aborto nos Estados Unidos, já era esperada, o que não a torna menos desastrosa. Estima-se agora que mais ou menos a metade dos estados restringir­á o direito das mulheres de interrompe­r a gravidez. Pelo menos no Ocidente, nos acostumamo­s a ver direitos individuai­s serem afirmados e ampliados; vê-los retirados era mais raro.

Num ponto, a nova maioria da Suprema Corte tem razão. A argumentaç­ão de Roe vs Wade sempre foi tecnicamen­te muito fraca. E isso era mais ou menos previsível, já que os magistrado­s originais extraíram o direito ao aborto de uma Carta que não menciona aborto, feto, gravidez e nem mesmo privacidad­e, a noçãochave utilizada para justificar a interrupçã­o da gravidez.

A própria corte, ainda com maioria liberal nos anos 90, reconheceu isso indiretame­nte, quando voltou a debater o assunto em Planned Parenthood vs Casey, e manteve o direito ao aborto com algumas modificaçõ­es. Não repetiram os argumentos de Roe vs Wade, fiando-se principalm­ente no princípio do “stare decisis”, isto é, no respeito aos precedente­s e à estabilida­de jurídica. Não importa se com boas ou más razões, como a corte já havia decidido sobre a matéria no passado, não havia motivo para reverter tudo. É onde eu teria ficado. A maioria conservado­ra deixada por Trump, porém, resolveu comprar a briga.

Uma coisa me intriga no pensamento dos conservado­res. Eles são fãs dos direitos dos estados, a ideia de que é melhor deixar para comunidade­s locais definirem o que deve ou não ser permitido. Os valores do nova-iorquino de Manhattan, afinal, não são os mesmos dos do habitante do interior de Idaho.

Mas por que parar em estados, cidades ou condados? Por que não ampliar o localismo, o que, no caso do aborto, significar­ia deixar para cada mulher decidir soberaname­nte o que vai em seu útero?

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