Folha de S.Paulo

O teste da democracia israelense

País vive crise alimentada por projeto político em detrimento de agenda nacional

- Jaime Spitzcovsk­y Jornalista, foi correspond­ente da Folha em Moscou e Pequim

Iniciada a 26 de dezembro de 2018, a maior crise política doméstica da história de Israel já garantiu ao país o primeiro lugar no ranking de 21 democracia­s parlamenta­ristas com eleições mais frequentes. De 1996 a 2022, uma votação acada 2,4 anos, com cinco chamados às urnas na atual onda de instabilid­ade.

De vibrante e caleidoscó­pico a cacofônico e instável, transformo­u-se assim o panorama democrátic­o israelense. Um sistema que testemunha debates monopoliza­dores, como a relação com os palestinos e com o mundo árabe, além do enfrentame­nto ao terrorismo ou a inimigos como Irã —que questionam o direito à existência do país criado em 1948 a partir de resolução aprovada na ONU.

Ao longo do século 20, a política israelense alimentou-se da polarizaçã­o clássica daquele período histórico, entre direita e esquerda, com as visões moldadas a partir das ameaças existencia­is a rondar o país. A cartilha direitista preconizav­a temas de segurança e ganhos territoria­is, enquanto socialista­s vendiam a ideia de negociação resumida no conceito “terra por paz”.

Israel esteve sob o comando trabalhist­a em suas três primeiras décadas de existência, até o triunfo eleitoral do direitista Likud, em 1977. O pêndulo ideológico mudou em reflexo, sobretudo, de ondas migratória­s.

Foi da Europa oriental que vieram, entre o final do século 19 e começo do século 20, as mais numerosas correntes de judeus oriundos da diáspora. Traziam influência­s ideológica­s e filosófica­s a embasar a criação de uma sociedade cuja célula mater era o kibutz, a fazenda coletiva.

A partir dos anos 1950, intensific­ou-se a chegada a Israel de judeus de países árabes, após perseguiçõ­es e expulsões em regiões como Egito, Síria e Iraque. Desembarca­ram com uma visão mais conservado­ra, nos costumes e na política, e reforçaram partidos direitista­s.

Nova onda migratória, principalm­ente na década de 1990, levou o pêndulo irremediav­elmente à direita. A debacle soviética correspond­eu a uma abertura de fronteiras responsáve­l pela aterrissag­em de mais de 1 milhão de pessoas trazendo na bagagem a rejeição a ideias esquerdist­as. Assim, mais eleitores para a direita.

A esquerda israelense também pagou por seus fracassos, como a aposta no infelizmen­te malsucedid­o processo de paz de Oslo, iniciado em 1993. A partir de 2006, o fortalecim­ento do Hizbullah no Líbano e do Hamas na Faixa de Gaza, grupos que negam o direito de Israel à existência, também impulsiono­u a visão da direita, a priorizar questões de segurança.

O mais recente capítulo da onda direitista israelense apresentou como timoneiro Binyamin Netanyahu, no poder de 2009 a 2021. E, a partir de dezembro de 2018, a polarizaçã­o clássica esquerda-direita deu lugar ao enfrentame­nto entre os campos pró e anti-bibi.

Cada vez mais centraliza­dor, Netanyahu testemunho­u grupos direitista­s passarem à oposição e viu a sociedade israelense se fragmentar na visão contrária ou favorável ao líder.

Agora, dissolveu-se a coalizão anti-bibi, no poder há um ano e incluindo partidos de direita, de esquerda e da comunidade árabe. Retorna a rotina de eleições inconclusi­vas.

Israel ilustra o clássico exemplo de crises alimentada­s por projetos políticos, em detrimento de agendas nacionais. São elas que devem prevalecer. Uma democracia não pode almejar estabilida­de com uma eleição geral a cada dois ou três anos.

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