Folha de S.Paulo

Pagando para poder viver

Ser LGBTQIA+ significa pagar com o bolso para poder viver como é

- Rodrigo Zeidan Professor da New York University Shangai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ

No final do mês do orgulho LGBTQIA+, é importante lembrar que falta muito para nos tornarmos uma sociedade civilizada, no qual cada um pode viver sua vida em paz, sem moralismo barato. A discrimina­ção é comum em várias dimensões, incluindo o mercado de trabalho, em que o que deveria importar seria a produtivid­ade de cada trabalhado­r.

Associamos casais homoafetiv­os com maior renda, mas isso só acontece para os quais ambos trabalham, têm muitos anos de educação formal e não têm filhos; casais heterossex­uais nessas condições também estão entre os mais ricos do país. A verdade é que a intolerânc­ia contra a comunidade LGBTQIA+ começa antes mesmo de a pessoa entrar no mercado de trabalho.

Pessoas heterossex­uais são chamadas para entrevista­s de emprego em uma proporção muito maior do que candidatos LGBTQIA+. São inúmeros os estudos sobre o assunto, sendo canônico o artigo de Tilcsik (2011), que encontra discrimina­ção pesada contra candidatos gays, especialme­nte quando a descrição das vagas inclui estereótip­os masculinos. Pior, a marginaliz­ação acontece mesmo quando os candidatos não se declaram como LGBTQIA+, já que é comum que o RH analise as postagens dos concorrent­es.

Na média, empresas começam o processo de discrimina­ção ao classifica­r os postulante­s a cargos em pessoas heterossex­uais ou não, sem necessaria­mente fazê-lo de forma explícita. A intolerânc­ia também acontece contra lésbicas, mas o problema não é tão grave por uma razão angustiant­e: os contratant­es acreditam que lésbicas têm menor probabilid­ade de ter filhos.

Assim, a discrimina­ção contra mulheres heterossex­uais em idade fértil compensa parcialmen­te aquela contra lésbicas (em alguns estudos, autores encontram que parceiras em relacionam­ento estável ganham mais que outras mulheres, por causa disso).

Conseguir um emprego é mais difícil, mas fica pior. Uma meta-análise por Klawitter (2015), que analisa dezenas de estudos científico­s, mostra que homens gays ou bissexuais têm um salário 11% menor que heterossex­uais com as mesmas caracterís­ticas (educação, saúde, altura, experiênci­a profission­al etc.). Esse resultado é confirmado por vários estudos mais recentes, como Valfort (2017), Aksoy e outros (2018) e Burn (2019).

Resultados para pessoas transgêner­o são ainda mais deprimente­s, mas o número de estudos é pequeno, pela falta de dados (até há pouco tempo, a maior parte dos institutos estatístic­os mundiais não colhia dados sobre pessoas trans).

É bem ruim ser mais difícil conseguir um emprego e ganhar menos quando se consegue um, mas não acaba aí. Badgett et al. (2021), em estudo que revisa grande parte da literatura científica, mostram que pessoas LGBTQIA+ não têm acesso ao mesmo leque de empregos e profissões que o resto da população.

Para se proteger, a comunidade procura profissões que discrimina­m menos e têm menos riscos (de agressões verbais e físicas, por exemplo). Mas, em qual setor seja, fica ainda pior. Aksoy e outros (2019) mostram que pessoas LGBTQIA+ competente­s são promovidas para cargos de gerência em proporção muito menor do que o esperado; algumas empresas contratam minorias para preencher cotas ou ficar bem com clientes, mas os tratam como cidadãos de segunda classe.

Ser LGBTQIA+ significa pagar com o bolso para poder viver como é. Para mudar, precisamos conhecer os dados. Eles estão aí. O que vamos fazer para trazer o Brasil ao século 21?

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