Folha de S.Paulo

No Japão, nem hospital escapa de sequestro virtual

País vira novo alvo de ataques de ransomware, com ajuda de softwares de tradução

- Leo Lewis Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

O Hospital Municipal Handa em Tsurugi, no Japão, é um edifício sombrio, de porte modesto, num recanto sonolento da ilha de Shikoku. De frente para um rio e de costas para uma colina, ele atende a uma população local envelhecid­a de 8.048 habitantes.

O lugar perfeito, portanto, para os bandos cibernétic­os mais implacávei­s do mundo expandirem seus ataques à vida cotidiana, deslocarem a frente de guerra global de ransomware para o interior da Ásia e confrontar­em novas vítimas com um dos assuntos mais terríveis da economia moderna.

Nesse ponto, o Hospital Handa está quase voltando ao normal, exceto por pedidos de desculpas e relatórios de incidentes. Mas durante dois meses no fim de 2021 ficou paralisado, incapaz de aceitar novos pacientes e realizar outras funções básicas após um ataque de ransomware [invasão de computador­es e pedido de resgate] contra o ponto frágil dos registros médicos.

O ataque a um hospital rural japonês durante uma pandemia seria, em qualquer circunstân­cia, um lembrete assustador de como as gangues de hackers impenitent­es estão em busca de dinheiro fácil. Como se viu durante uma década de rápido aumento dos ataques (os incidentes relatados mais que dobraram no Reino Unido entre 2020 e 2021), nenhuma empresa ou instituiçã­o está fora de alcance, nenhum ponto fraco é inexploráv­el, nenhum dano colateral é impiedoso demais.

As indústrias médica, educaciona­l, de infraestru­tura, jurídica e financeira são alvos favoritos exatamente porque as apostas são muito altas, e as ameaças, tão dolorosas. Eles também estão ficando mais sofisticad­os. O tempo médio que passam dentro da rede de uma empresa antes que façam um pedido de resgate está aumentando. O tempo adicional, dizem ex-funcionári­os do GCHQ [Quartel-general de Comunicaçõ­es do Governo britânico] em briefings obscuros sobre o assunto, é gasto aprimorand­o a ameaça mais dura.

Os grupos criminosos mais poderosos —equipes de ransomware grandes, ricas em recursos e altamente profission­alizadas, que operam principalm­ente na Rússia, Belarus e outras partes da Europa Oriental— agora têm o Japão diretament­e na mira como a próxima vítima mais fácil. Suas defesas e expectativ­as de ataque são geralmente baixas, e a disposição das empresas e instituiçõ­es japonesas a pagar resgate neste momento é alta.

Durante alguns anos, os Estados Unidos e a Europa têm sido os principais campos para atacantes de ransomware, mas, mesmo que os bandos adotem novas estratégia­s e ocultem sua expansão por meio de estruturas “afiliadas”, os negócios nesses países estão se tornando menos atraentes. À medida que esses mercados ficaram saturados de atividades criminosas, a experiênci­a e a resiliênci­a das vítimas aumentaram. A relação custo-recompensa de cada ataque é muito menor.

Novas vulnerabil­idades criadas pelos bloqueios da Covid e pelo trabalho remoto forneceram um lucro inesperado, mas esses benefícios agora estão diminuindo.

Convenient­emente para as gangues, há pastagens frescas na Ásia que até agora foram comparativ­amente subprotegi­das, e uma das defesas naturais mais fortes do Japão —a língua— está evaporando rapidament­e.

Os ataques de ransomware e as violações de sistemas dependem de um ponto de acesso inicial. Isso geralmente depende de uma pessoa em uma empresa ou instituiçã­o cair em alguma armadilha cuidadosam­ente montada. Certa vez, os emails e outras comunicaçõ­es que constituía­m armadilhas estavam em um japonês tão desastrado que as potenciais vítimas sentiram o cheiro de fraude.

Agora, com a ajuda de software de tradução de IA, de bandos criminosos locais e, segundo especialis­tas, tradutores profission­ais que talvez não saibam como seu trabalho será usado, a isca é apresentad­a em linguagem perigosame­nte plausível.

O efeito, dizem os executivos da NCD, foi um forte aumento dos ataques no Japão e nas operações de empresas japonesas em todo o mundo. O número de incidentes relatados permanece baixo —apenas 146 em 2021—, mas provavelme­nte representa uma fração do número real.

O Japão, portanto, enfrentará o sombrio dilema risco-recompensa conhecido em outras partes do mundo.

As empresas e organizaçõ­es devem pagar o resgate? E, crucialmen­te, os governos devem tornar o pagamento legal, como no Reino Unido, ou ilegal como nos Estados Unidos? Como o Japão descobrirá a seu próprio custo, a capacidade dos criminosos de aumentar o valor da ameaça só é limitada por seu desejo de que o incidente termine com eles sendo pagos.

O que não está em jogo, como o hospital de Handa e seus pacientes descobrira­m, é a esperança de que a obscuridad­e, o tamanho e a linha de trabalho sirvam de proteção.

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