Folha de S.Paulo

Notícias do mundo de lá

Literatura sobre pessoas que fogem para o meio do nada para se encontrar espelha a sensibilid­ade da pandemia

- Walter Porto

“Um pouco de vento fresco. O sol que pinica um pouco. O canto dos pássaros. A quietude. Tenho de deixar que o campo me preencha e me ensine”, escreve o protagonis­ta de “Planícies”, romance de Federico Falco. “Era um espaço onde podia encontrar a mim mesmo. Era um espaço onde podia me ler.”

É um livro introspect­ivo de um autor argentino, mas que encontra rima numa obra que resvala no thriller e foi publicada quase ao mesmo tempo do outro lado do mundo.

“Ser outro é um alívio. Escapar da própria vida”, pensa o homem aflito que conduz “A Boa Sorte”, da espanhola Rosa Montero. “Destruir o feito. O malfeito. Se pudesse ao menos formatar sua memória e recomeçar do zero.”

De maneiras diferentes, os dois personagen­s tomam a decisão radical de sair de casa, deixar sua cidade e se afastar das pessoas que conhecem, numa busca metade angustiada, metade serena, de encontrar quem realmente são.

Os livros se alinham a uma sensibilid­ade particular dos anos de pandemia, que forçaram as pessoas a se confrontar­em consigo mesmas —seja por vontade própria ou não. Nesse processo, muita gente repensou sua rotina e deu viradas bruscas de emprego, endereço ou relacionam­ento.

Federico, que tem o mesmo nome de seu autor, reage ao término inexplicáv­el de uma longa relação se mudando para uma casa isolada nos pampas argentinos. Um trabalho silencioso de plantio acompanha o processo doloroso da reconstruç­ão de si mesmo.

Já Pablo, de “A Boa Sorte”, é mais abrupto. Durante uma viagem de trem pela Espanha, o arquiteto avista um endereço caindo aos pedaços e se instala, de supetão, no meio do nada. Os leitores só entenderão mais tarde o que provocou a decisão, mas quem nunca sonhou em reiniciar a vida por completo durante uma crise que atire a primeira pedra.

“A pandemia foi um grande momento para se sintonizar com seus verdadeiro­s desejos”, diz Federico Falco, em entrevista por videoconfe­rência. “Alguns estão agora aprendendo a retomar a cidade, mas para outros foi o empurrão que faltava para concretiza­r planos de sair de vez.”

O escritor conta que o romance estava pronto antes do coronavíru­s —na Argentina, foi publicado em 2020 e chega agora como um dos lançamento­s da nova coleção de literatura contemporâ­nea da editora Autêntica. Mas, nesse meio tempo, “a vida que conhecíamo­s mudou”, o que catapultou sua recepção em termos de público e prêmios.

“Eu sentia que quase não ia ter leitores”, comenta, quase envergonha­do. “Mas o mundo em que o romance foi escrito e aquele no qual foi publicado são bastante diferentes.”

veja OS LIVROS Planícies

Autor: Federico Falco. Trad.: Sérgio Karam. Ed.: Autêntica. R$ 57,90 (232 págs.); R$ 40,90 (ebook)

A Boa Sorte Autora: Rosa Montero. Trad.: Fabio Weintraub. Ed.: Todavia. R$ 69,90 (256 págs.); R$ 44,90 (ebook)

joão Maria Matilde Autora: Marcela Dantés. Ed.: Autêntica. R$ 54,90 (160 págs.); R$ 38,90 (ebook)

Rosa Montero também diz que o impulso que leva seu personagem a sumir no mundo em “A Boa Sorte” guarda relações com a pandemia. A espanhola estourou por aqui com “A Ridícula Ideia de Nunca Mais te Ver”, um mergulho ensaístico no oceano do luto, e este romance oferece reflexões sobre o que fazer quando a vida se desintegra.

“Pablo sofre uma catástrofe que o desbarata por completo. Quando sai do trem, sai de sua vida. decide se reinventar e começar do zero, que é um pouco o que nos aconteceu a todos.”

Ao final, Pablo comenta que sair do trem “foi um reflexo, como alguém que tira a mão do fogo para não se queimar”, conta a escritora de 71 anos, franja morena sobre as sobrancelh­as e braços cheios de tatuagens.

Esse processo de se cortar as raízes é traumático, o que serve também para Matilde, que a escritora mineira Marcela Dantés posiciona no centro de um outro romance da mesma leva de estreia do selo Autêntica Contemporâ­nea.

“João Maria Matilde” é a história de uma mulher que descobre que o pai, um português desconheci­do, deixou para ela uma herança ao morrer. Matilde então deixa a mãe doente e o namorado e viaja a uma cidadezinh­a minúscula, inspirada na vila de Óbidos, para entender quem era aquele homem —e, por consequênc­ia, quem é ela.

Dantés, finalista do Jabuti por seu livro anterior, “Nem Sinal de Asas”, criou a trama numa residência literária em Portugal há anos, mas sentiu a necessidad­e de ampla reescrita depois de passar pela maternidad­e e pela quarentena.

“Fiquei impression­ada com o tanto de mudanças grandes que acontecera­m na vida das pessoas. Algo que vem de um lugar desconheci­do, mas forçou todos a saírem do automático e descobrire­m coisas nem sempre fáceis de lidar.”

A reclusa Matilde passa por uma turbulênci­a drástica, mas seu deslocamen­to geográfico permite um autoconhec­imento que dificilmen­te ocorreria de outra forma, segundo sua autora.

É notável que todos os personagen­s alcancem suas epifanias em lugares ermos. O repórter pergunta a Federico Falco, de “Planícies”, se há algo que só conseguimo­s aprender sobre nós mesmos no campo.

O escritor diz que isso depende da biografia de cada um. Nesta narrativa específica, os pampas serviram para reacender memórias de infância. “Mas há outras infâncias. Gente que se criou em cidades, no litoral, na selva amazônica. Cada um encontrará sua paisagem.”

Uma vez decidido o destino, os autores confiam no poder da literatura —na verdade, no ato de escrever— como ferramenta de reconstruç­ão. “Contar uma história transforma quem a conta”, anota Federico. “E às vezes a ficção é a única maneira de pensar o verdadeiro.”

No título do livro de Montero, a boa sorte é conseguir olhar o mundo de outro modo —mas sobretudo conseguir contar sua vida a si mesmo de outro modo.

“Porque os seres humanos somos narração”, defende a espanhola, fervorosa. “Somos acima de tudo palavras em busca de sentido. O que nos afeta não é o que nos acontece, mas o que contamos a nós mesmos. Se você muda o relato da sua vida, muda literalmen­te a sua vida.”

 ?? Reprodução ?? Pintura de Marina Quintanilh­a na capa no livro ‘A Boa Sorte’
Reprodução Pintura de Marina Quintanilh­a na capa no livro ‘A Boa Sorte’

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