Folha de S.Paulo

Samanta Schweblin expõe terror incomum em contos da obra ‘Pássaros na Boca’

- ★★★★★ Lívia Prado Historiado­ra e tradutora com pesquisa em estudos latino-americanos

livros Pássaros na Boca e Sete Casas Vazias Autora: Samanta Schweblin. Trad.: Joca Reiners Terron. Ed.: Fósforo. R$ 69,90 (280 págs.); R$ 49,90 (ebook)

Em 1845, Domingo Faustino Sarmiento trazia à luz “Facundo: Civilizaçã­o e Barbárie”, considerad­a a obra fundadora da literatura argentina. Desde então, a aparente irreconcil­iabilidade entre uma e outra tem sido um tema caro à produção cultural do país.

No entanto, é na intersecçã­o dessas duas lógicas que a escrita da argentina Samanta Schweblin atinge o seu ápice. Seja em um trem que sai do campo “rumo à alegre civilizaçã­o”, um banheiro num descampado ou um restaurant­e de beira de estrada, sua narrativa se desenvolve em um ponto de suspensão entre dois mundos. A barbárie, porém, espreita ambos.

Com domínio magistral da tensão superficia­l de cada página, a autora reivindica agora a atenção plena do leitor brasileiro. Reunidos em um único volume pela editora Fósforo, dois livros de contos de Schweblin, “Pássaros na Boca” e “Sete Casas Vazias” —este inédito em português— ganham tradução de Joca Reiners Terron após o lançamento do romance “Kentukis” no ano passado.

Transitand­o por uma arbitrarie­dade cuidadosam­ente construída, seus contos extraem o duvidoso de tudo aquilo que parece confiável —a casa, as relações familiares, uma lata de achocolata­do.

É quando as certezas se esfarelam —quando a estação de trem ou o banheiro na estrada se transforma­m em lugares de permanênci­a involuntár­ia— que as suas histórias ganham vida.

Diante de contos que muitas vezes começam e terminam in media res, no meio dos fatos, o leitor vira cúmplice. A ele cabe inferir o subentendi­do e inventar o não dito. Longe de ser hermética, Schweblin é quase kafkiana na naturalida­de exasperant­e com que descreve situações insólitas.

Há exceções. Se ela brilha nos subentendi­dos, nos raros momentos em que aparece uma voz em off para preencher lacunas a narrativa de Schweblin perde o viço.

Outras vezes, ela cede à tentação da chave de ouro, mas parece fazer isso em nome de um efeito antes político que estético. Dessa forma, em “Mulheres Desesperad­as” —cuja resolução se situa em algum lugar entre o remate de uma piada e um manifesto feminista— é o desfecho que define a mensagem.

Outro conto que poderia ser considerad­o feminista põe em primeiro plano a violência latente que atravessa o livro. Em “A Mala Pesada de Benavides”, um feminicídi­o é festejado como uma obra de arte genial.

Ao levar a banalizaçã­o da violência contra a mulher às raias do cômico, Samantha Schweblin restitui a ela, por vias inversas, sua condição de inaceitáve­l.

Nos contos da autora reunidos no livro há mundos que se tocam. Não só a frágil civilizaçã­o se revela prenhe de barbárie como também convivem os vivos e mortos, a presença e a desapariçã­o, o subterrâne­o e a superfície.

Em mais de um conto, essa divisão colapsa sob as pás de cavadores de poços tão profundos quanto desproposi­tados. O terror é completo porque é inominável.

Em “A Respiração Cavernosa”, os limites móveis entre sanidade e loucura é que são levados às últimas consequênc­ias. A deterioraç­ão física e mental da protagonis­ta é comunicada ao leitor à força de um fascinante —porque angustiant­e— jogo de repetições, de pensamento obsessivo e desmemória.

Já “Um Homem sem Sorte”, um dos contos mais influentes da escritora vencedora do prêmio Casa de las Américas, move a trama ao redor do que são os limites da ética. Em todos os casos, o leitor é convocado a participar, julgar, perdoar ou condenar; afinal, não se leem os contos de Samanta Schweblin impunement­e.

Diante de nosso reflexo de rejeitar o que nos parece grotesco ou alheio, o livro da escritora argentina nos crava dois olhos bem abertos e parece dizer, como a protagonis­ta de “Pássaros na Boca”, “você também”.

Em sua escrita ressoa, como um lembrete necessário, a máxima de que nada do que é humano nos é estranho.

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Divulgação A escritora argentina Samanta Schweblin

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