Folha de S.Paulo

Danuza tinha um quê de Capitu

Aos trancos e barrancos, a bela que veio de Itaguaçu trabalhou, amou e criou

- Mario Sergio Conti Jornalista, é autor de ‘Notícias do Planalto’

“Você conversa com o Serra?”, perguntou Danuza Leão. “Converso às vezes.”

“Da próxima vez, pergunte se eu dei para ele em Paris.”

“Minha intimidade com ele não chega a tanto.”

“Me faz esse favor”, insistiu. Como amava Danuza, fui em frente. José Serra, tucanaço, remanchou e não respondeu nem que sim nem que não. Ao relatar meu fracasso, ela exclamou: “Então eu dei, claro que dei!”.

Foi depois do golpe de 1964, quando Serra, presidente da UNE, se exilou. Danuza abandonara o namorado, o cronista Antonio Maria, para cuidar dos filhos e do ex-marido, o jornalista Samuel Wainer, também ele exilado em Paris.

“Com 20 e poucos anos, o Serra não tinha um tostão; franzino e tímido, estava perdido na cidade”, contou. “Aí, dei para ele.” Deu por pena? “Também nem tanto”, respondeu, com uma risada marota.

Os papos com Danuza eram imprevisív­eis. Num jantar, estava também Lily, née Monique Lemb, depois Carvalho, e por fim Marinho. Lily lembrou que, ao chegar ao Rio, “pouco depois das caravelas de Cabral”, fora dançarina no Cassino da Urca.

“Dançava nua?”, perguntou sua amiga. “Semi”, respondeu a viúva de Roberto Marinho. “Isso eu não fiz”, riu Danuza. Mas, instada, admitiu que foi parar numa delegacia na Bahia por passear nua na praia. “Estava

calor”, justificou. Pode?

Podia porque aprendera com Lily a esquecer o passado quando a ternura exigia. Num dos baixos da montanharu­ssa da vida, Danuza se viu sem ter onde morar. Pois Lily, que não usava cheque nem cartão de crédito, lhe apareceu com um saco de dólares.

Danuza comprou um apartament­o com o presente. Nas vezes que tentou agradecer, Lily lhe garantiu que estava enganada, que não lhe dera dinheiro nenhum. Pode?

Podia porque ambas tinham um quê de Capitu: vieram de baixo, aprenderam a se virar, mudaram de estamento e criaram uma personalid­ade própria. Afora que as duas perderam

filhos —Horacinho e Samuca— em acidentes trágicos, dos quais talvez nunca tenham se recuperado. Havia nelas um travo de angústia.

Bem aboletada no grand monde carioca, Lily o via com bonomia. Já Danuza trabalhava sofregamen­te. Foi modelo, animadora de boate, atriz em “Terra em Transe”, repórter e cronista —ácida e leve, o que não é fácil— do grand monde. Aprendeu do zero e se tornou uma profission­al de primeira em todos os ofícios.

Sua beleza era fora dos padrões. Descendent­e de europeus e índios, era alta e forte, tinha olhos de esmeralda e traços oblíquos. A formosura fez com que a provincian­a nascida em Itaguaçu, no Espírito Santo, tivesse o Rio a seus pés desde a adolescênc­ia.

Contudo, ela seduzia mais pela inteligênc­ia, pela graça, pelas observaçõe­s sardônicas — feitas à boca pequena— e pelo empenho profission­al. Passava as festas anotando o que os grãfinos pontificav­am. Era uma antidondoc­a desassosse­gada.

Por isso mudou 17 vezes de endereço no Rio. Por inquietude e para ganhar a vida —e poder viajar para Paris e Capri. Comprava apartament­os detonados, os reformava do piso ao teto e revendia pelo triplo do que gastara.

Gostava de conversar com pedreiros e derrubar paredes. Adotou o mote de Guilherme Guimarães, seu amigo costureiro: “O cheiro de cimento me inebria”. Inebriada, lá ia ela fazer dietas e esticar o rosto, mudar o corte do cabelo e passear no calçadão. E beber.

Quando Samuca morreu, Danuza afundou no álcool. Em Paris, se hospedava no Hotel d’anglaterre, mas ficava mais tempo no Blue Navy, um botequim de quinta ali perto, no bulevar Saint-germain.

Enturmou-se com os balconista­s a ponto de permitirem que levasse o copo de uísque para o quarto. Ou descia às seis da manhã para tomar a primeira talagada com os lixeiros que faziam a ronda do bairro.

Ao meio-dia, partíamos em peregrinaç­ão. Víamos vitrines; bebíamos pastis; comentávam­os as modas; tomávamos um kir para abrir o apetite; almoçávamo­s tutano e vinho barato; falávamos mal da vida alheia; um morritos no La Rhume encerrava os trabalhos. Paris era uma festa móvel.

Como as tiradas de Danuza formavam um caudal, ela ficará na memória de quem teve

| seg. Luiz Felipe Pondé | ter. João Pereira Coutinho | qua. Marcelo Coelho | qui. Fernanda Torres, Drauzio Varella | sex. Djamila Ribeiro | sáb. Mario Sergio Conti a ventura de conhecê-la. Suas duas últimas, ditas a Lu Lacerda, foram sobre Bolsonaro.

Ao ver uma foto do ogro no hospital, com a pança indecente de fora, disse: “O problema de olhar essa foto é se desinteres­sar pelo sexo masculino para o resto da vida”. A outra frase, no auge da peste, foi séria: “Minha maior vergonha na vida foi ter votado em Bolsonaro”.

Danuza foi maior que sua verve. Até onde é possível separar o juízo objetivo do afeto pela autora, dá para arriscar que “Quase Tudo” é um livro de apurado pique artístico. Não se sabe o que virá na próxima página.

A indetermin­ação nasce da escritora com inserção insegura na sociedade. A beldade provincian­a de classe média, e sem profissão, se apega às relações amorosas ou mundanas. Mas as relações se rompem e ela quebra a cara.

Exemplos: “Como eu não sabia fazer nada, fazia tudo que aparecesse”; “fui indo, aos trancos e barrancos, mas indo e aprendendo”; “nós, que não brigávamos nunca, brigamos feio; em voz baixa e sem ofensas, o que é pior”.

“Quase Tudo” funde presente e passado, forma e conteúdo. É o que ocorre quando conta como recebeu a notícia da morte do filho: “Pensei que nunca passaria por sofrimento maior, mas passei, e quantas vezes, e durante quantos anos —como agora”.

Ela foi em frente. Em Paris, aos 72 anos, um desconheci­do lhe disse que era “très belle” e propôs que transassem. Ela fugiu. Aí mudou de ideia e deu para o felizardo. A vontade de amar, de esquecer o passado e partilhar o presente, deu prazer e sentido à vida de Danuza.

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Bruna Barros

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