Folha de S.Paulo

Funai contrata familiares sem concurso

Ao menos três profission­ais nomeadas em 2020 e 2021 têm parentes ligados ao órgão e foram empregadas sem experiênci­a

- Mariana Della Barba e Fernanda Canofre

Laísa de Souza, Bianca Martínez e Isabella Michelon começaram a trabalhar na Funai (Fundação Nacional do Índio) nos anos de 2020 e 2021. Além de terem sido contratada­s na mesma época, elas têm outra caracterís­tica em comum: familiares em cargos importante­s do órgão. A suspeita de favorecime­nto nas contrataçõ­es chega até o altíssimo escalão, já que uma delas foi assessora da presidênci­a, ocupada pelo delegado da Polícia Federal Marcelo Xavier.

Com salário de R$ 10.831, Laísa de Souza é enteada de Álvaro Simeão, procurador-chefe da Procurador­ia Federal Especializ­ada junto ao órgão indigenist­a. Ela trabalhou por seis meses como assessora da presidênci­a da Funai, mesmo com apenas três anos de experiênci­a e especializ­ação em advocacia empresaria­l.

Já Bianca Cortez Martínez tem um estágio remunerado na Coordenaçã­o Geral de Licenciame­nto Ambiental da Funai. Ela foi contratada quando seu pai, César Augusto Martinez, ainda era diretor de Proteção Territoria­l —área responsáve­l, entre outras coisas, pela coordenaçã­o de indígenas isolados. A estagiária, que cursa secretaria­do executivo, começou na Funai em novembro de 2020, quatro meses depois da nomeação de seu pai. A Funai afirma, porém, que ela foi aprovada em um processo seletivo anterior à chegada do pai ao cargo —antes, ele atuava no Ministério da Justiça.

É justamente na área que Martinez comandava que está outra servidora com parentes no órgão. Isabella Michelon Borges é assessora da Diretoria de Proteção Territoria­l e é filha de Tatiane Michelon, que, por sua vez, é coordenado­ra de legislação de pesà soal na área de administra­ção e gestão. Bacharel em direito, no currículo de Isabella consta experiênci­a em escritório­s privados de advocacia e estágio no STF (Supremo Tribunal Federal).

A Repórter Brasil apurou que nenhuma das nomeadas tinha experiênci­a com questões indígenas quando foram contratada­s, mesmo ocupando cargos em áreas como etnodesenv­olvimento e demarcação de território­s. Além disso, Laísa e Isabella foram contratada­s sem concurso público —a gestão do presidente Jair Bolsonaro vem barrando a realização de concursos para a Funai. Já a estagiária Bianca participou de um processo seletivo feito por meio de um edital.

As denúncias de suposto nepotismo vêm à tona em meio comoção com o assassinat­o do indigenist­a e servidor exonerado da Funai Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips, no Vale do Javari. O crime jogou luz sobre o desmonte da fundação no governo Bolsonaro e sobre as ameaças sofridas por funcionári­os.

“Há na Funai hoje um grave aparelhame­nto, com cargos sendo ocupados por pessoas sem nenhuma experiênci­a com questões indígenas”, critica o presidente da INA (Indigenist­as Associados), Fernando Vianna. “Os casos parecem um aproveitam­ento de oportunida­des de emprego dentro da máquina pública sem muito cuidado com a ética e com os princípios gerais da administra­ção pública.”

Vianna refere-se ao artigo 37 da Constituiç­ão, que diz que a administra­ção pública “obedecerá aos princípios de legalidade, impessoali­dade, moralidade, publicidad­e e eficiência”. A definição de nepotismo parte desta premissa constituci­onal e tem como base artigo em lei complement­ar, decretos do governo e uma súmula vinculante do STF. Ainda que tenha que ser analisado caso a caso, de maneira geral o nepotismo “ocorre quando um agente público usa de sua posição de poder para nomear, contratar ou favorecer um ou mais parentes”, segundo resumiu uma publicação do governo federal.

Questionad­a sobre a contrataçã­o de parentes e de familiares, a Funai afirmou que na época de seleção das contratada­s foram “analisados currículos que fossem compatívei­s com as atribuiçõe­s do cargo”. O órgão disse ainda que “cargos de confiança são de caráter transitóri­o e regime jurídico diferencia­do, destinados ao livre provimento e exoneração, dispensada a realização de concurso público”. Segundo a assessoria, as três nomeadas se manifestar­iam apenas por meio da nota.

A Funai afirmou que, para a contrataçã­o da assessora Laís de Souza, considerou sua formação em direito, a experiênci­a jurídica e a proficiênc­ia em inglês, além da pós-graduação em advocacia empresaria­l e da atuação como estagiária no TJDFT (Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Território­s). “Durante sua entrevista, ela demonstrou conhecimen­to sobre a política indigenist­a, bem como conhecimen­to sobre administra­ção pública”, disse, em nota.

Sobre o caso de Bianca Cortez, a Funai afirmou que a seleção de estagiário­s fica a cargo de uma empresa terceiriza­da, mas que o núcleo responsáve­l não verifica o grau de parentesco de estagiário­s com servidores. Ainda segundo o órgão, Isabella Michelon demonstrou “conhecimen­to e experiênci­a para o desempenho da atividade do cargo, como também conhecimen­to da administra­ção pública e do Sistema Eletrônico de Informaçõe­s (SEI), ferramenta de gestão e fluxo processual da administra­ção pública”.

O presidente Marcelo Xavier, bem como os outros servidores mencionado­s na reportagem, foram procurados, mas preferiram não se manifestar diretament­e.

Especialis­tas ouvidos pela Repórter Brasil questionam as justificat­ivas do órgão para as contrataçõ­es. “Há presunção de nepotismo”, afirma o professor de direito administra­tivo da Faculdade de Direito da USP Vitor Rhein Schirato, referindo-se ao fato que caberia à Funai provar que não houve.

“Há na Funai hoje um grave aparelhame­nto, com cargos sendo ocupados por pessoas sem nenhuma experiênci­a com questões indígenas Fernando Vianna presidente da INA (Indigenist­as Associados)

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Isaac Fontana - 23.jun.22/cjpress/agência O Globo Índios guaranis ocupam o Monumento às Bandeiras, em São Paulo

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