Folha de S.Paulo

Pesadelo americano

Decisão dos EUA contra aborto é começo de longa marcha para o atraso

- Mathias Alencastro Pesquisado­r do Centro Brasileiro de Análise e Planejamen­to, ensina relações internacio­nais na UFABC

A cruel abolição do direito federal ao aborto na única nação desenvolvi­da que carece de sistema de saúde público e amarga uma das maiores taxas de mortalidad­e materna é apenas o começo de uma longa marcha para o atraso.

Ela abre o caminho para o desmantela­mento do arcabouço jurídico que assegura os fundamento­s mínimos da justiça social nos Estados Unidos. Junto com o inquérito sobre a invasão do Capitólio, que corre em paralelo à ofensiva da Suprema Corte, a restrição do aborto revela o caráter multidimen­sional do que vem sendo chamado de “declínio americano”.

A cada vez mais evidente derrota na sua “batalha pela alma da América” também enfraquece Joe Biden de maneira decisiva. Se a decisão da Suprema Corte é o resultado de décadas de ativismo judicial dos republican­os, Biden parece incapaz de canalizar a revolta social.

Seu predecesso­r Barack Obama pelo menos dissimulav­a a impotência dos democratas com a sua maestria retórica. Mais importante ainda, os retrocesso­s institucio­nais abalam a principal promessa na política externa do governo Biden: “liderar não pelo exemplo do nosso poder, mas pelo poder do nosso exemplo”.

A partir de amanhã, os EUA serão conhecidos por ter um governo que exalta os direitos sexuais e reprodutiv­os nos fóruns internacio­nais, enquanto assiste aos estados mais conservado­res votarem restrições semelhante­s às que estão em vigor no Irã.

Um governo que envia o humanista John Kerry para viajar o mundo em busca de novos acordos climáticos, mas que é incapaz de implementa­r qualquer tipo de medida nessa matéria porque um senador democrata também é barão da indústria fóssil.

Um governo que ataca Moscou pelas violações de direitos humanos na Ucrânia, porém se prepara para reabilitar um autocrata saudita conhecido por ordenar o esquarteja­mento de um jornalista. Um governo que adora dar notas de comportame­nto para as democracia­s da América Latina embora uma parte cada vez maior da classe política local conteste a legitimida­de da última eleição presidenci­al.

Um governo ao leme de uma máquina militar pujante e de uma fábrica social falida, o que condena os seus diplomatas a promoverem um país que está deixando de existir.

A contradiçã­o entre o que os EUA pretendem ser e o que eles realmente são, um traço caracterís­tico do governo Biden, pode ficar resolvida no próximo ciclo eleitoral. Ainda este ano, as eleições de meio de mandato devem confirmar a percepção de que o país vive um novo “momento Carter”, em referência ao presidente democrata que serviu de interlúdio entre duas eras republican­as, a de Richard Nixon e a de Ronald Reagan. Com a diferença que, se a radicaliza­ção republican­a nos anos 1980 se deu na economia, os ataques no futuro atentarão contra a democracia e os direitos fundamenta­is.

Se a abertura dessa nova era conservado­ra se confirmar nas eleições de 2024, ela vai colocar em causa, de forma potencialm­ente irreversív­el, o lugar da sociedade americana como ideal de progresso no imaginário global.

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