Folha de S.Paulo

O ‘call center do inferno’

Com acesso fácil a dados de usuários, golpistas se especializ­am em tirar dinheiro

- Ronaldo Lemos Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro

É preciso ser claro e sem rodeios: o sistema de identifica­ção utilizado no Brasil colapsou. Em vez de servir para provar a identidade de uma pessoa, esse sistema é hoje uma chaga aberta que está sendo explorada por criminosos, por meio de golpes cada vez mais sofisticad­os.

RG, CPF, endereço, nome do pai e da mãe, número do celular e vários outros dados pessoais que o país utiliza como identifica­ção são hoje ferramenta­s para extorsões, golpes, cadastros ilegítimos e assim por diante.

A razão para isso é uma só: todos os dados de identifica­ção de praticamen­te todas as pessoas do país vazaram. Esses dados estão hoje livremente disponívei­s online ao alcance de golpistas e organizaçõ­es criminosas.

Uma verdadeira indústria surgiu para explorar essas informaçõe­s. Além do famoso golpe do WhatsApp, que manda mensagem para o pai ou a mãe de uma pessoa alegando emergência e pedindo uma transferên­cia de dinheiro imediata, a cada dia surge um golpe novo no país.

Por exemplo, o golpe do falso call center. O criminoso identifica facilmente o banco em que a pessoa tem conta. Liga então para ela a partir de um número forjado (“spoofed”) que correspond­e exatamente ao número do banco. A pessoa atende e ouve uma voz 100% profission­al, idêntica a dos call centers.

O criminoso então repassa alguns dados da pessoa para ela confirmar. Na sequência, alega que houve um problema de segurança com a conta e que vai transferir para a área de segurança do banco.

A ligação é transferid­a para outra pessoa, também com voz e postura 100% profission­al.

A segunda pessoa então começa a passar “orientaçõe­s” para a vítima. Nesse processo, muitas vezes consegue extrair as senhas e até mesmo convencê-la a fazer transferên­cias bancárias de “teste” para outras contas. Quem é vítima desse golpe fica atônito: como podem saber todos os meus dados? Como podem ter me ligado a partir do telefone do banco em que tenho conta? Ações infelizmen­te fáceis de serem feitas no contexto atual.

Em outras palavras, se você ainda não caiu em nenhum golpe da internet ou não conhece ninguém que caiu, pode ter certeza de que sua hora vai chegar. A indústria dos golpes baseada nos vazamentos de dados cada dia cria um mecanismo novo de extrair dinheiro e informaçõe­s das vítimas. Essa indústria se profission­alizou, possui capital, funcionári­os e protocolos de treinament­o. É altamente inovadora. É como se fosse um serviço de atendiment­o ao consumidor do mundo ao avesso, um call center do inferno.

O que fazer nesse contexto? Na minha opinião há duas coisas a serem feitas. A primeira é indenizar as vítimas dos golpes apurando responsabi­lidades. No âmbito da Comissão de Tecnologia da OAB-SP estamos apurando responsabi­lidades para ingressar com medidas cabíveis.

A segunda coisa é reinventar completame­nte o sistema de identifica­ção do país. O que está aí faliu, ele virou problema e não solução. Idealmente, o caminho deveria ser criar uma identidade digital verdadeira no país, certificad­a e reconfirma­da de forma relacional e permanente na medida que a pessoa vai vivendo sua vida. O sistema de identifica­ção brasileiro precisa de um reboot. Até lá prepare-se para golpes sem fim.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil