‘Peter von Kant’, de Ozon, celebra Fassbinder
Cineasta francês escolhe mostrar romance homossexual para tratar das nuances do amor, mas tropeça no espetáculo
cinema Peter von Kant ★★★★ ★ França, 2022. Dir.: François Ozon. Com: Denis Ménochet, Isabelle Adjani e Khalil Ben Gharbia. Sessões até 5/7, no Festival Varilux de Cinema Francês
Desde o título, “Peter von Kant” é uma homenagem a “As Lágrimas Amargas de Petra von Kant”, no momento em que o filme de Rainer Werner Fassbinder chega aos 50 anos.
Mas há coisas que mudam. O diretor agora é François Ozon e, de certa forma, é preciso ver os dois filmes em conjunto. Ou seja —ao de Fassbinder, um autor, sucede agora o de um artesão. Mas não um mau artesão, apesar dos altos e baixos quase escandalosos ao longo de sua carreira.
Em todo caso, Ozon não é bobo. E a ideia de transformar o amor de duas mulheres do original pelo de dois homens é oportuna. E não são dois homens quaisquer. Denis Ménochet é Peter, um cineasta de sucesso, gordo, inchado de bebida, desleixado na aparência e caótico na existência pessoal para quem tudo parece se transformar quando encontra Amir, vivido por Khalil Ben Gharbia, sensual jovem de origem árabe por quem Peter se deixa fascinar de imediato.
À parte essa mudança, Ozon segue quase palavra por palavra o original de Fassbinder, com o mérito de pôr frente a frente dois homossexuais sem recorrer a trejeitos secundários e clichês. O amor entre dois homens é um amor com especificidades, claro, mas o que está em questão é o amor.
Fassbinder desvelou em seu filme (e na peça teatral) todas as nuances da relação amorosa —a ansiedade, o medo, a paquera, a humilhação, o prazer, a obsessão, a insônia, a entrega, o porre, o abandono, a euforia, a esperança, a dor, o bem, o mal, entre outras.
Ozon tenta seguir Fassbinder, e o faz com dignidade. É verdade que a composição de Ménochet, por brilhante que seja, nos dispersa um pouco da trama. Não raro dá para pensar, por exemplo, no quanto vida e obra de Fassbinder coincidem. Somos levados ao que, no caso, menos interessa.
No mais, Ozon conduz seu filme com firmeza, ao menos até o quarto final, quando os dois filmes divergem. Fassbinder
opta pela exposição magistral, e o mais discreta possível, da dor de Petra. Ozon, ao contrário, promove um show de gritos e choros no momento crucial do drama e o reduz a um dramalhão tão ruidoso quanto pouco interessante.
Talvez a mudança de tom tenha a ver com a época em que cada filme foi feito. O de Fassbinder tem certa frieza como marca. Em 2022, tal atitude talvez não fosse a mais cautelosa. A opção de Ozon corresponde a um retorno ao mundo do espetáculo. Observamos não mais o amor, nem mesmo as personagens, mas os atores. Vejam como Ménochet está bem, vejam Hanna Schygulla, que surpresa agradável, no papel de mãe de Peter. Uma estética neoclássica.
O final dos dois filmes evidencia a diferença entre os dois cineastas. É quando os enquadramentos de Fassbinder mais se sobressaem.
Mais do que isso, é quando melhor sobressai o quanto Fassbinder soube absorver as lições de seu mestre, Douglas Sirk —no uso das cores, da luz, na secura das atrizes. Mas tudo é sempre original.
Ozon vai igualmente a Sirk, o que é quase obrigatório. No entanto, se em certos momentos existe o posicionamento do ator atrás da janela, o azul intenso, a luz semelhante, os galhos de árvore balançados pelo vento, tudo também remete a Douglas Sirk, mas apenas de maneira exterior. Em suma, o que vemos são tiques, procedimentos, imitação.
Isso não quer dizer que “Peter von Kant” seja um mau filme, longe disso —é obra mais que digna de um bom artesão.
O problema de “Peter” é ser, de maneira quase obrigatória, comparável ao filme de um cineasta de gênio. Talvez Ozon chegue a um público maior, o que é bom, entre outras, porque finalmente se trata o amor entre pessoas do mesmo sexo como amor, e não desvio.
Mas não se pode comparar “Peter” a “Petra”. Até porque em “Petra” o amor, no sentido de paixão, é sempre desvio da norma, sejam os parceiros de que sexo forem. O amor para Fassbinder é trágico; para Ozon, é apenas dramático.
Podemos dizer que “Peter” é um filme muito bom, no mesmo sentido em que “Top Gun: Maverick” é muito bom, um espetáculo bem-sucedido — cada um, claro, à sua maneira.