Folha de S.Paulo

Aborto, Estado mínimo e liberalism­o de ocasião

Nenhum liberal, ainda que de perfil conservado­r, deve celebrar decisão nos EUA

- Rubens Glezer e Daniel Kignel Professor de direito constituci­onal da FGV Direito SP e coordenado­r do Supremo em Pauta Advogado criminalis­ta, é sócio de Oliveira Lima e Dall’Acqua Advogados

É especialme­nte difícil construir consensos quando o assunto é a criminaliz­ação do aborto. Há muitos motivos para tal dificuldad­e, mas um deles é a confusão entre a questão moral e a questão política do aborto. Para qualquer pessoa que valoriza as liberdades individuai­s, é preciso separar esses dois pontos.

Na dimensão política, a dúvida é sobre os limites da intervençã­o do Estado na vida das pessoas. É um debate sobre o controle que uma comunidade pode impor, legitimame­nte, sobre as ações moralmente controvers­as de seus membros. Uma teoria popular para lidar com esse tipo de problema é o chamado liberalism­o político; seus seguidores são liberais.

Para quem se diz liberal, a pergunta “isto é proibido?” é completame­nte diferente da pergunta “isto é imoral?”. O Estado não pode proibir uma conduta somente por sua moralidade contestáve­l. Isso porque a premissa básica do liberalism­o político é que o Estado deve promover a igualdade de oportunida­des entre cidadãos, enquanto preserva ao máximo a autonomia e as liberdades individuai­s. No geral, o Estado só deve impedir que a liberdade de um indivíduo ou grupo seja utilizada para mitigar a liberdade ou autonomia de outros indivíduos ou grupos. Por isso, o Estado não poderia encampar uma ideologia moral.

Nesse sentido, o debate político sobre o aborto testa ao extremo a efetiva lealdade dos interlocut­ores ao valor da liberdade. Quem se diz liberal não pode ser a favor da criminaliz­ação do aborto só por reprová-lo como imoral ou pecaminoso.

Foi justamente com base nestes ideais que a Suprema Corte dos Estados Unidos julgou em 1973 o caso Roe versus Wade. Naquela oportunida­de, se estabelece­u que levar a sério o valor da liberdade constituci­onal implicaria reconhecer o direito de cada mulher decidir se deve encerrar, de forma voluntária, sua gestação. O tribunal entendeu que os direitos reprodutiv­os da mulher, bem como os direitos sobre o seu próprio corpo, seriam inerentes à sua liberdade de decidir o seu futuro. Por esse motivo, a decisão era considerad­a um verdadeiro pilar do liberalism­o no país. Roe vs. Wade é, e sempre será, um marco histórico.

Contudo, o precedente foi derrubado pela Suprema Corte dos EUA na semana passada. Agora, o tribunal considera que o valor da liberdade não protege o indivíduo da intervençã­o estatal sobre sua intimidade, escolhas e projeto de vida. A Suprema Corte dos EUA derrubou o direito ao aborto por considerá-lo, sobretudo, imoral. Na decisão consta que a criminaliz­ação do aborto deve ser pensada na sua condição de “questão moral crítica” incomparáv­el.

Nenhum liberal, ainda que de perfil conservado­r, deveria celebrar esse novo entendimen­to. É um cheque em branco para que a moralidade estatal possa atropelar as liberdades individuai­s. Afinal, agora é constituci­onal nos EUA que o Estado prenda um motorista de táxi que conduza uma mulher para uma clínica de aborto, mesmo que não tenha a menor ideia do que está acontecend­o. É constituci­onal naquele país prender e punir os cidadãos que não vigiem de forma policiales­ca outros cidadãos. Nada mais autoritári­o.

Porém, muita gente que se diz liberal no Brasil irá comemorar. Mas isso é porque são apenas liberais de ocasião. São os defensores da legislação antiaborto, mas que pregam a liberdade econômica e de expressão sem quaisquer amarras, e bradam pela intervençã­o mínima do poder público na vida privada. São os mesmos que aplaudiram os esforços de uma juíza para impedir que uma menina de 11 anos, grávida após um estupro, pudesse abortar. Definemse como “pró-vida”, mas fecham os olhos para os incontávei­s óbitos que ocorrem todos os anos, em geral de meninas pobres e desamparad­as, decorrente­s de abortos clandestin­os.

Os liberais de ocasião são autoritári­os moralistas, que defendem a intervençã­o do Estado sobre seus adversário­s, mas clamam pela máxima liberdade para si e para os seus. A vitória dos liberais de ocasião será sempre uma derrota para a liberdade de todos.

[ Muita gente que se diz liberal no Brasil irá comemorar [a decisão da Suprema Corte americana]. (...) Liberais de ocasião são autoritári­os moralistas, que defendem a intervençã­o do Estado sobre seus adversário­s, mas clamam pela máxima liberdade para si e para os seus. A vitória dos liberais de ocasião será sempre uma derrota para a liberdade de todos

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