Folha de S.Paulo

Justiça digital como ‘veneno-remédio’

Experiênci­a compulsóri­a de modelo online agora exige debates e ajustes

- Patricia Vanzolini e Leonardo Sica Respectiva­mente, presidente e vice-presidente da OAB-SP

Brad Smith, presidente da Microsoft e advogado, alerta sobre a tecnologia servir tanto para resolver todo tipo de problema quanto para criar novos. O equilíbrio entre vida física e digital seria, para ele, a chave para evitar os perigos do uso mal planejado ou excessivo da tecnologia.

A Justiça brasileira melhorou com o processo eletrônico e, nos últimos anos, o Judiciário retomava o uso de novas tecnologia­s quando surgiu o novo coronavíru­s. O isolamento forçou a imediata realização dos atos judiciário­s em meio digital. Não houve tempo para reflexão sobre o nosso modelo de justiça digital e sua adaptação à realidade normativa e material.

Houve rápida adesão dos juízes à realização de todos os atos por videoconfe­rência, revertendo a resistênci­a da magistratu­ra à gravação de audiências —reivindica­ção antiga e não atendida da advocacia. Audiências e julgamento­s online foram regulament­ados em provimento­s de tribunais e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Valendose da emergência, surgiu um arsenal de normas de gabinete, formuladas sem debate público e sem a participaç­ão dos demais atores do sistema de Justiça.

As regras de audiências e julgamento­s online estão sendo definidas conforme entendimen­to exclusivo da burocracia judiciária e, por vezes, servem para distanciar a advocacia e os cidadãos do Judiciário. Antes de avaliar a funcionali­dade, as prioridade­s parecem ser a conveniênc­ia do serviço interno e uma produtivid­ade restrita a critérios quantitati­vos. A realização de Justiça, contudo, é mais ligada à forma com que ela se produz do que com números.

A justiça digital que nasce da pandemia transferiu ônus excessivos para a advocacia: partes e testemunha­s, sem recursos ou locais adequados, dependem dos nossos escritório­s para participar de atos judiciais, que se transforma­ram em extensão dos fóruns, especialme­nte diante da demora na retomada de audiências naqueles locais públicos.

O ingresso livre nos tribunais foi substituíd­o por horas em “salas de espera” virtuais; o botão de “mudo” virou arma para cassar a palavra de advogados. A publicidad­e dos julgamento­s desaparece­u. Há pessoas que serão julgadas por um juiz com quem nunca tiveram contato.

Advogados e jurisdicio­nados, milhares sem meios adequados, participam de audiências com juiz, promotor, partes e testemunha­s, pela tela de smartphone­s, em condições indignas de trabalho e sem segurança para a produção de provas.

É necessário preservar o espaço público e presencial para realização de alguns atos judiciais: audiências de instrução e de custódia, depoimento­s sensíveis, reconhecim­entos, acareações, júri. Há formalidad­es que reforçam a seriedade do ato e comunicam às pessoas que ali está se produzindo Justiça, o que não acontece quanto tudo ocorre por vídeo, com perda de percepções pessoais, de interação, de comunicaçã­o não verbal e da mediação direta dos profission­ais do direito entre si e com jurisdicio­nados.

Temos hoje um modelo de justiça digital eclodido, não projetado e tampouco fruto de debate público. A advocacia vem alertando para os riscos de piora no acesso à Justiça. No final dos anos 1990, desenvolve­use o conceito de justiça de proximidad­e. As audiências e julgamento­s online e o regime perene de teletrabal­ho nos fóruns estão substituin­do-o pela justiça de distanciam­ento.

Para reverter esse processo e usar bem a tecnologia, é preciso regular a justiça digital em lei, pois o Parlamento é a arena adequada ao debate republican­o —ou, pelo menos, que o CNJ promova uma discussão com a participaç­ão de todos.

Tal regulação deve definir: 1 - quais atos judiciais serão exclusivam­ente online; 2 - quais atos não poderão ser realizados online; e 3 - quais poderão ser praticados em meio digital apenas com concordânc­ia das partes. Após dois anos de experiênci­a compulsóri­a, participan­do como espectador­a, a advocacia está pronta para, conforme sua missão constituci­onal, integrar-se ao processo de definição do nosso modelo de justiça digital.

O isolamento forçou a imediata realização dos atos judiciário­s em meio digital. (...) O ingresso livre nos tribunais foi substituíd­o por horas em “salas de espera” virtuais; o botão de “mudo” virou arma para cassar a palavra de advogados. (...) Há pessoas que serão julgadas por um juiz com quem nunca tiveram contato

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Cláudio Charge de Cláudio sobre orçamento secreto no governo Bolsonaro publicada em abril de 2022

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