Folha de S.Paulo

Bolsonaris­mo vence mesmo se perder eleição, diz autor

- Naief Haddad

SÃO PAULO Impression­ado com os atos de raiz golpista do 7 de Setembro do ano passado, liderados pelop residente JairBol sonar o, e coma ausência de reação de políticos e sociedade, Marcos Nobre se lançou mais uma vez ao que chama de “diagnóstic­o do tempo presente”.

O último livro do professor do departamen­to de filosofia da Unicamp com essa abordagem —em que discute o passado recente e a atualidade política brasileira, e avalia caminhos possíveis para o futuro— havia sido “Imobilismo em Movimento”, publicado em 2013.

Em “Limites da Democracia”, lançado nesta terça (28), enfrenta os dez anos seguintes. Não são quaisquer dez anos.

“São dez anos de brutal crise econômica e social, de instabilid­ade política permanente, de desastres ambientais sem precedente­s, de ameaça direta à democracia eà vida ”, escreve Nobre, tambémp residente do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamen­to).

O livro busca motivações e efeitos das manifestaç­ões de junho de 2013, a partir das quais se consolidou o que chama de “oposição extra institucio­nal ”.

Os anseios desses grupos encontrara­m eco na Lava Jato, operação que “acabou se mostrando, para uma enorme parcela do eleitorado, a última instância recursal da política, único caminho institucio­nal disponível para canalizar sua insatisfaç­ão”.

A Lava Jato insuflou as “novas direitas”, observadas em minúcia no livro, e manteve o sistema político acuado, até o impeachmen­t de Dilma Rousseff.

É de Michel Temer o último governo federal analógico, o que talvez soe pitoresco, mas é bem mais do que isso.

Está aí um dos pontos fortes de “Limites da Democracia”. O o livro mostra ser impossível radiografa­r a realidade do país sem uma percepção detalhada dos avanços digitais.

Ele observa o bolsonaris­mo sob vários ângulos, entre eles, como um “partido digital”, conceito criado pelo sociólogo italiano Paolo Gerbaudo para definir organizaçõ­es com expressão eleitoral, mobilizada­s permanente­mente e capazes de hackear (ou parasitar) partidos institucio­nalizados.

Importa menos a sigla à qual Bolsonaro está vinculado —no caso, o PL. Para líderes de vertente autoritári­a, vale, sobretudo, a força do “partido digital”.

Isso leva Nobre a concluir: “Perdendo ou ganhando a eleição em 2022, o bolsonaris­mo já ganhou. Derrotá-lo será tarefa para muitos anos”.

“É enorme o grau de organizaçã­o e de engajament­o [do bolsonaris­mo]”, diz à Folha.

“O 7 de Setembro de 2021 não foi dirigido ao bolsonaris­mo, a esses cerca de 30% que o apoiam [Datafolha mais recente indicou 28%]. Foi dirigido ao núcleo duro do ‘partido digital bolsonaris­ta’, um núcleo autoritári­o. E os estudos mostram que a mobilizaçã­o foi muito capilariza­da”.

“Apesar do que aconteceu nos últimos três anos e meio, Bolsonaro mantém cerca de 30% de apoio e não é da boca para fora, há alto grau de engajament­o”, diz. “É razoável imaginar que mantenha essa base antissiste­ma ao seu lado, mesmo que perca a eleição”.

Para ele, a questão central do bolsonaris­mo não é eleitoral.

“O campo democrátic­o continua jogando amarelinha eleitoral enquanto Bolsonaro monta o octógono do MMA do golpe. Que dará como for possível. Conseguind­o a reeleição e fechando o regime desde dentro, produzindo caos social duradouro, aguardando o fracasso do seu sucessor e as eleições de 2026, dando um golpe em moldes mais clássicos.”

Ele desmonta interpreta­ções normalizad­as sobre episódios e movimentos dos últimos dez anos. Veja algumas delas:

Junho de 2013, raio em céu azul

As enormes manifestaç­ões de 2013 não foram um acontecime­nto completame­nte inesperado, como muitos já disseram. Nobre insere junho no contexto global das revoltas democrátic­as dos primeiros anos da década de 2010. Segundo ele, foram revoltas que expressava­m mudanças estruturai­s da sociabilid­ade ocorridas ao longo dos anos 2000 e que coincidira­m com uma severa crise econômica mundial.

“Não foi um ‘raio em céu azul’ porque havia muita movimentaç­ão na base da sociedade ao longo dos anos 2000, tanto no Brasil quanto no mundo. Por que não era tão visível? Porque era, em grande parte, digital. E isso estava fora do radar.”

Ao fim da crise da democracia, o modelo institucio­nal voltará a ser o que era

Grande parte dos autores que escrevem sobre a crise da democracia do ponto de vista global indicam, grosso modo, dois caminhos para o futuro: a volta ao modo anterior de funcioname­nto da política institucio­nal, ainda que com ajustes, ou a morte da democracia.

Não é o que Nobre pensa. “Se saída democrátic­a houver, será apenas com um salto adiante. Não há como voltar atrás”, afirma.

“O mundo virou de pontacabeç­a, não raro temos a sensação de que a teoria continua no mesmo lugar”, diz.

Fortalecim­ento da extrema direita é reação a movimentos de intenção emancipató­ria

Ele aponta o “equívoco, grave, de enxergar a ascensão da extrema direita unicamente [ele destaca a palavra] em termos de reação a movimentos” de esquerda, especialme­nte de cunho emancipató­rio.

“Há uma parcela de verdade nessa afirmação, claro. Mas quando se diz que ‘a extrema direita é só reação’, existe primeirame­nte uma supervalor­ização do movimento emancipató­rio. Em segundo lugar, você se desobriga de entender como a extrema direita se mobiliza.”

“O campo democrátic­o continua jogando amarelinha eleitoral enquanto Bolsonaro monta o octógono do MMA do golpe

Marcos Nobre professor do departamen­to de filosofia da Unicamp

Limites da Democracia De Junho de 2013 ao Governo Bolsonaro Marcos Nobre. Editora Todavia (320 págs.). Preço R$ 75 (ebook, R$50)

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