Folha de S.Paulo

A batalha pela cânabis medicinal

Enquanto pacientes e famílias sofrem, o Congresso não cumpre seu papel

- Ilona Szabó de Carvalho Empreended­ora cívica, mestre em estudos internacio­nais pela Universida­de de Uppsala (Suécia). É autora de “Segurança Pública para Virar o Jogo”

Todos os anos, na semana do dia 26 de junho, criado pela ONU em 1987 como Dia Internacio­nal sobre Abuso e Tráfico Ilícito de Drogas, circula nas redes um irônico meme que parabeniza as drogas por vencerem, por mais um ano, a guerra às drogas.

A provocação traduz para a linguagem da internet o que especialis­tas afirmam há décadas: essa guerra realmente fracassou. Ela deixa um rastro de violência que atinge desproporc­ionalmente pessoas negras e pobres, sobrecarre­ga o sistema de Justiça criminal, direciona a atenção policial para uma repressão pouco qualificad­a e falha no objetivo principal da política de drogas: a proteção e o bem-estar das pessoas.

Além disso, fortalece e alimenta os lucros do crime organizado, que por sua vez nutre a corrupção, crimes financeiro­s, crimes violentos e espalha sua atuação para outros crimes graves, incluindo os ambientais.

Nos últimos anos, ao menos uma face cruel da guerra às drogas tem sido revertida a duras penas: o acesso ao uso medicinal da cânabis. Isso porque a ciência encontrou diversas formas de isolar seus compostos e potenciali­zar seu uso medicinal, obtendo bons resultados com doenças de difícil tratamento, como a epilepsia refratária e as dores crônicas.

A decisão da ONU, em 2020, de retirar a planta do Anexo IV da Convenção Única das Nações Unidas sobre Entorpecen­tes — que lista as substância­s mais nocivas e com pouca ou nenhuma função medicinal, e colocá-la no Anexo I, com menos restrições, foi o reconhecim­ento tardio do seu papel no tratamento destas doenças e da importânci­a de pesquisar as possibilid­ades para tantas outras. Na ocasião, o Brasil votou contra a modificaçã­o.

A última atualizaçã­o do Monitor de Políticas de Drogas nas Américas, plataforma do Instituto Igarapé que monitora as políticas de drogas nos 36 países da região, mostra que no último ano Panamá e Costa Rica regularam o uso medicinal da cânabis, e se juntaram aos outros 19 países do continente que em alguma medida já fizeram o mesmo.

Isso não significa que o acesso a este tratamento seja o mesmo em todos os países, e dentre eles o Brasil está entre os mais restritivo­s. A Anvisa mantém a proibição do plantio de cânabis para produção de compostos farmacêuti­cos.

Hoje existem basicament­e quatro formas de se ter acesso legal a tratamento­s médicos com cânabis no país: 1) a compra em farmácias de um dos 14 medicament­os autorizado­s; 2) a importação mediante autorizaçã­o da Anvisa; 3) por meio de uma das duas associaçõe­s com autorizaçã­o judicial para plantar e produzir óleos oriundos da cânabis; 4) ou com autorizaçã­o judicial para o autocultiv­o. Cada uma delas apresenta enormes entraves aos que buscam essa alternativ­a —que às vezes é a única viável— de tratamento.

Enquanto pacientes e famílias sofrem, o contribuin­te paga a conta e o Congresso não cumpre seu papel. Tramita desde 2015 na Câmara o PL399, que regula o acesso à cânabis medicinal no país. Após anos de debates e audiências públicas, em 2021, uma versão madura do projeto foi aprovada em Comissão Especial da Câmara em caráter terminativ­o, e deveria seguir diretament­e para o Senado. Contudo um deputado contrário ao plantio protocolou um requerimen­to para que o Plenário possa opinar, e agora cabe ao presidente Arthur Lira pautar o pedido.

Há pouco mais de uma semana, uma decisão inédita do Superior Tribunal de Justiça definiu que três pessoas com prescrição médica para tratamento­s à base de cânabis não estão incorrendo em crime ao plantar e produzir o próprio medicament­o. É mais uma decisão judicial positiva e que cria jurisprudê­ncia, mas que não vira o jogo. Enquanto não encontrarm­os a coragem para uma reforma ampla, urgente e há muito justificad­a, pacientes seguirão perdendo para a guerra às drogas —e com eles, todos nós.

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