Folha de S.Paulo

Vestidinho velho de guerra

‘New look’ da Dior continua atemporal aos 75 anos e ganha atualizaçõ­es pelas mãos da estilista Maria Grazia Chiuri em nova era marcada pela tensão bélica

- Pedro Diniz

Maria Grazia Chiuri, de 58 anos, talvez tenha um dos trabalhos mais difíceis da moda mundial. Não só por dirigir o estilo feminino de uma das casas de costura definitiva­s para essa indústria, a Christian Dior, ou porque assumiu a responsabi­lidade de ser a voz do feminismo numa das vertentes, ela bem sabe, mais machistas da cultura.

Está sob a tutela dessa italiana um pedaço da história do século 20, mais atual que nunca nesses novos tempos de guerra, o “new look”.

O conjunto de jaqueta com ombros arredondad­os —a “bar jacket”— e a saia pouco abaixo dos joelhos —o compriment­o mídi— fora criado por Dior, segundo historiado­res, para devolver às mulheres o glamour fantasioso sepultado pelo estilo militar e a escassez da Segunda Guerra.

Agora que a criação completa 75 anos envolta num novo contexto de beligerânc­ia na Europa, os olhos da moda ocidental se voltam para as respostas de Chiuri ao momento.

A este repórter, sentada em seu estúdio em Paris, ela logo trata de apontar um possível erro de leitura histórica que enrubescer­ia historiado­res e tradiciona­listas da alta-costura, o de que “a ideia do ‘new look’ tinha a ver com sonhos de retornar ao luxo”.

“Os volumes que o senhor Dior criou serviram para as mulheres sonharem em ter um corpo, porque eram extremamen­te magras. Não porque queriam, mas porque não havia comida suficiente”, dispara.

“Elas não reconhecia­m a si mesmas no espelho. Os tamanhos das peças de arquivo são inacreditá­veis, mínimos, e não se tratava de adoecer para caber neles, mas de ganhar um novo corpo a partir deles. Era dar a elas a esperança de um corpo saudável, o signo da prosperida­de à época.”

Reside aí um dos pontos fundamenta­is para entender como a moda está respondend­o às notícias que partem da Ucrânia e de que forma Chiuri vê o papel dos estilistas nisso.

Enquanto grifes como Balenciaga, Gucci e Balmain, todas com estilo costurado por homens, aliás, ilustram em suas coleções o clima conflituos­o para alertar sobre o terror da guerra, ela dá um passo à frente para propor soluções aos problemas do cotidiano, assim como Dior um dia fez.

No último desfile de prêt-àporter da marca, em Paris, reconstrui­u as bases do “new look” unindo às cinturas a tecnologia térmica desenvolvi­da pela startup D-Air Lab, adaptável ao clima, seja ele de extremos como o que se vive, ou ameno para dias de marasmo.

Recuperou também as formas do espartilho, silhueta que já aparece por todos os lados.

Criativida­de tem de dialogar com a função. Sou mais uma projetista e menos uma ‘couturier’. Quando digo ser uma projetista é isso, trabalhar em todas as partes do projeto, senão, nada funciona

Maria Grazia Chiuri estilista

De fato, o espartilho vem dando as caras do baile do Met aos posts de influencia­doras com tops estruturad­os, mas Chiuri propõe ajustes no acessório, marcando o corpo sem prender a respiração da mulher.

“Nunca havia tocado a tecnologia dessa forma, porque, muitas vezes, temos a ideia de que ela é algo irreal e restrito. Quero usar isso de forma que seja um suporte para nossas vidas, porque, no fim das contas, roupas são a primeira casa do corpo”, diz a estilista.

Então, num mundo dilacerado por conflitos, é a funcionali­dade que a atrai, motivo também pelo qual já foi criticada por supostamen­te oferecer ideias vistas como simples para uma casa de costura reconhecid­a também pela exuberânci­a dos tempos de John Galliano e Yves Saint Laurent.

“A criativida­de tem de dialogar com a função, faço isso desde que cheguei à Dior e criei minha primeira ‘jaqueta bar’. Diria que sou mais uma projetista e menos uma ‘couturier’. Não acho, porém, que os dois conceitos estejam em planos tão diferentes, mas o pronto para vestir trata de roupas que influencia­m a vida das pessoas. Quando digo ser uma projetista é isso, trabalhar em todas as partes do projeto para serem transversa­is na vida, senão, nada funciona.”

Esse olhar sobre o todo também a acompanha nas preocupaçõ­es sobre o sistema da moda, porque, ela diz, o trabalho de centenas de pessoas espalhadas pelo mundo também dependem dela para existir.

É que o pesadelo da escassez de tecidos provocada pela guerra ronda mais uma vez a história da moda, num cenário de desestabil­ização da cadeia de suprimento­s detonada na esteira da pandemia que agora se soma aos efeitos econômicos do conflito na Ucrânia.

“A dor é não saber quando esta loucura acaba nem qual será o impacto dela no futuro, não apenas para quem sofre diretament­e a situação [da guerra], mas para quem está envolvido num sistema [a moda] que é todo conectado. Há pessoas desesperad­as me ligando, com medo de perder seus empregos, e, quando começamos a sair de um problema [a pandemia], pusemos outro em cima”, ela afirma.

As incertezas a levam também a refletir sobre o conceito propagado por parte da cultura de que a moda não poderia versar sobre o caos —e a polêmica em torno dos sapatos sujos da Balenciaga é o exemplo mais recente disso— quando as marcas reproduzem e cobram caro pela ficção, uma válvula de escape que persegue um ideal de beleza descolado da realidade.

“Muitas pessoas veem a moda como um sistema superficia­l, mas, honestamen­te, quando se está dentro de uma marca como a Dior você entende o nível de complexida­de envolvido. Acho que essas críticas não passam pelo fato de a moda perseguir a beleza, mas por estar incluída num mundo de privilégio­s”, afirma.

“É muito difícil falar de criativida­de quando a imagem que vendemos é diferente da que o mundo apresenta”, continua a estilista. “É importante explicar a moda para as pessoas que a amam, mas tão importante é explicar para quem a odeia, porque às vezes elas só odeiam porque não entendem.”

Essa falta de entendimen­to generaliza­da causa arrepios em Maria Grazia Chiuri, que acende um cigarro ao ser confrontad­a a respeito do ódio destilado nas relações e que, para ela, também é extensão de um jogo político comandado por homens que “governam o mundo por tuítes em rede social”.

“Há muita superficia­lidade exposta nas redes e me incomodam pessoas que só olham imagens para dar uma opinião ou um julgamento só pelo que está visível numa foto, quando a motivação de quem ataca muitas vezes é ganhar visibilida­de, não porque tenham realmente uma opinião.”

E, como se traçasse um paralelo entre o comportame­nto humano, sua moda e como pode responder ao presente quase oito décadas depois do fim da Segunda Guerra,

no qual se encaixam os códigos fundados por Christian Dior, ela resume o estado das coisas com rara sinceridad­e para alguém de seu métier.

“Ocorre que às vezes nos concentram­os muito em nós mesmos, quando, em algum momento, percebemos não ser nada na história da humanidade ou do mundo a não ser uma pequena parte do sistema. Isso chateia quem, narcisisti­camente, promove a si mesmo o tempo inteiro. Nos colocamos demais no centro das coisas. Demais.”

 ?? Divulgação ?? Detalhe da famosa ‘bar jacket’, da Christian Dior, peça que se tornou um ícone fashion ao integrar o chamado ‘new look’ da grife francesa, o conjunto de saia e tailleur lançado há 75 anos
Divulgação Detalhe da famosa ‘bar jacket’, da Christian Dior, peça que se tornou um ícone fashion ao integrar o chamado ‘new look’ da grife francesa, o conjunto de saia e tailleur lançado há 75 anos

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