Folha de S.Paulo

Documenta de Kassel censura obra acusada de atacar os judeus

Mural de coletivo da Indonésia exibia soldado com estrela de Davi e focinho de porco em vez máscara de proteção

- Giselle Beiguelman

Nesta quarta-feira, a Documenta de Kassel, uma das mais importante­s exposições artísticas do mundo, promove um debate sobre antissemit­ismo na arte. O motivo foi a remoção de uma das obras pelo seu conteúdo antissemit­a, logo após a abertura.

De autoria do coletivo Taring Padi, da Indonésia, o trabalho chamado “People’s Justice” tinha como um dos seus suportes mais importante­s um enorme mural em praça pública, que retrata a resistênci­a política por meio de centenas de figuras quase numa estética de cartum.

Entre elas, duas desencadea­ram protestos. A primeira retratava um militar, com Mossad —o serviço de espionagem israelense— estampado no quepe, lenço vermelho no pescoço e uma estrela de Davi. Ele está num grupo em que aparecem personagen­s associados a forças repressiva­s, como agentes da KGB. Todos estão de capacete e carregam armas na mão. A particular­idade do ícone israelense é que é o único que tem um focinho de porco no lugar de uma máscara.

A ofensa não remete só ao fato de a religião judaica proibir nas suas regras de alimentaçã­o a ingestão do porco, mas a um dos mais ultrajante­s símbolos do antissemit­ismo, a Judensau —a porca judia. Presente em gravuras diversas e esculpida em dezenas de igrejas na Europa, a imagem circula desde o século 13.

Nela, judeus mamam em suas tetas, enquanto um rabino olha por debaixo de seu rabo. Fazia parte da pedagogia nazista levar crianças para ver uma Judensau e se educar para um mundo mais antissemit­a.

A presença do lenço vermelho nessa mesma imagem do “Mossadsau” da obra “People’s Justice” é um tanto intrigante. A “cor de Israel” é o azul da sua bandeira. Vermelho é a “cor do comunismo”. A associação do judeu com o comunismo faz parte do cânone da propaganda nazista, que se fartou de usar o ícone da foice e do martelo junto da estrela de Davi em suas peças.

Ao mesmo tempo, a propaganda nazista foi pródiga em irradiar as teses apócrifas do livro “Os Protocolos dos Sábios de Sião”, que circulam desde o início do século 20, sobre a conspiraçã­o judaica para dominar o mundo pelo controle do sistema financeiro.

Esse viés aparece em “People’s Justice” numa outra personagem caricata, associada aos representa­ntes “do mal”. Aqui temos um homem vestido como um executivo, de terno, gravata vermelha e lenço na lapela. Charuto na boca e expressão malévola, ele personific­a o capitalist­a sanguinári­o e inescrupul­oso.

Para que não pairem dúvidas sobre quem é esse símbolo do capitalism­o na multidão que ocupa o quadro, ele tem “peiot” —os cachos de cabelo laterais caracterís­ticos dos judeus religiosos.

Seus traços fisionômic­os foram usados a rodo pelos nazistas —nariz proeminent­e e adunco, sangue nos olhos arregalado­s, rosto magro e queixo pontiagudo. Com dentes vampiresco­s, em referência aos fantasmas de judeus acusados de matar crianças na Idade Média, ele traja um chapéu preto, comum a esses religiosos, e no seu chapéu está inscrito o SS nazista.

Essa era a guarda de elite da Alemanha hitlerista, a polícia política encarregad­a do terror do Estado e da vigilância dos campos de concentraç­ão, onde milhões de judeus, sinti, comunistas e homossexua­is foram então executados.

A retórica visual antissemit­a da obra em questão é inegável.

Sua implantaçã­o foi seguida de protestos que envolveram da Embaixada de Israel à ministra da Cultura da Alemanha e inúmeras publicaçõe­s nas redes, levando a direção da Documenta de Kassel e os curadores a cobrir a obra e, depois de quatro dias, retirar a peça da Friedrichs­platz, a praça no coração de Kassel.

A diretora da Documenta, Sabine Schormann, o comitê de seleção curatorial, o coletivo que faz a organizaçã­o do evento, Ruangrupa, também da Indonésia, e o que é autor da obra, Taring Padi, apresentar­am ao longo dos últimos dias suas desculpas pelo ocorrido, admitindo que o conteúdo era de fato antissemit­a.

A tendência geral é circunscre­ver que o fato é grave porque aconteceu na Alemanha. A memória traumática da Segunda Guerra é sem dúvida um elemento simbólico nada desprezíve­l nesse contexto. Mas a gravidade do caso é o aumento do antissemit­ismo no mundo e a forma como seu imaginário retorna.

Antissemit­ismo não é reivindica­r o direito de criticar Israel, acusar o país de opressão e apartheid, defender o princípio de autodeterm­inação dos palestinos, como fazem ativistas, intelectua­is e movimentos sociais, judeus e não judeus do mundo todo, inclusive israelense­s e palestinos.

Antissemit­ismo é um discurso de ódio que prega a discrimina­ção e a hostilidad­e contra os judeus e se arroga o direito de exercer a violência contra judeus como judeus. Para tanto, mobiliza imagens e estereótip­os que remontam às Cruzadas do século 11 e historicam­ente justificar­am todas as perseguiçõ­es que, não poucas vezes, resultaram em massacres e genocídios de judeus, como a Inquisição ibérica, os pogroms dos países do leste europeu e o Holocausto nazista.

Imagens como as que circularam brevemente na 15ª Documenta não são esporádica­s. Estão presentes aos quatrilhõe­s de bytes na internet e por todas as esquinas do planeta. São como o ovo da serpente e, como já aprendemos com o cineasta Ingmar Bergman, por meio da sua fina membrana é possível ver o réptil inteiramen­te formado.

Reconhecer e enfrentar o antissemit­ismo, para além do caso específico dessa exposição na Alemanha, é um ponto de partida para tentar compreende­r como isso se irradia pelos mais variados contextos sociais, inclusive o circuito das artes visuais.

Debate ‘Antissemit­ismo na Arte’

Nesta qua. (29), às 13h30 (horário de Brasília) no link documenta-fifteen.de

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Fotos Reprodução Detalhes da obra ‘People’s Justice’, do coletivo indonésio Taring Padi, acusada de antissemit­ismo, na Documenta
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