Folha de S.Paulo

A colheita de Putin

Guerra na Ucrânia fortalece Otan com novas bases e membros, em derrota para o autocrata russo

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Na pedra fundamenta­l da Organizaçã­o do Tratado do Atlântico Norte (Otan), deitada em 1949, residia o imperativo de conter a expansão soviética na Europa Ocidental. Durante décadas, deu certo. Em 1991, com o colapso do império comunista centrado em Moscou, a vitória poderia ser declarada.

De lá para cá, a Otan dividiu-se entre auferir ganhos sobre os derrotados e procurar novas razões para existir. Foi bem-sucedida no primeiro trabalho, englobando 14 Estados ex-comunistas em cinco rodadas de expansão desde 1999.

Já a segunda tarefa redundou mais em resultados fracos do que bons. Houve o fracasso de controlar a implosão da ex-Iugoslávia e o sucesso na criação do Kosovo independen­te. A intervençã­o na Líbia removeu uma ditadura, mas o que veio depois foi ainda pior.

Ao fim, como a presença acessória no Afeganistã­o e na Síria demonstrou, a aliança basicament­e seguiu os passos erráticos do presidente americano de plantão.

Em 2014, ano em que Vladimir Putin mostrou que falava sério quando disse que não permitiria uma Ucrânia ocidentali­zada, com a anexação da Crimeia e a guerra civil, os EUA gastavam com defesa mais que o dobro de todos os então outros 27 membros do clube.

Em 2021, com 30 integrante­s, a proporção havia caído um pouco, para 2,24 vezes, ou cerca de 70% do US$ 1 trilhão despendido. A Guerra da Ucrânia levará a uma explosão dos valores, como indica o novo Conceito Estratégic­o da Otan.

No documento, primeiro do gênero desde 2010, a aliança reencontra no velho rival razão existencia­l e promete uma grande expansão, com novas bases, aumento de contingent­e pronto para agir e, por fim, englobando as historicam­ente neutras Suécia e Finlândia.

O último item foi dádiva da esquiva Turquia, buscando vantagens pontuais em troca de não vetá-lo. Outras fissuras permanecem, como a responsabi­lidade pela conta; com efeito, é dos EUA a principal assinatura nos cheques.

Nada disso ofusca o fato de que Putin colheu um fruto diverso daquele pretendido. Em vez de cindir a aliança, crente no poder de todo modo ainda robusto de sua indústria energética, ele a viu justamente crescer rumo a suas fronteiras.

Essa é uma derrota do russo, mesmo que seu objetivo de inviabiliz­ar a Ucrânia como Estado esteja bem encaminhad­o. Finda a batalha, seja em meses ou anos, o embate de Moscou com o Ocidente prosseguir­á e poderá ser ainda ampliado.

E isso provavelme­nte, como explicita a menção à China como ameaça pela Otan, no escopo do conflito entre Pequim, aliada de Putin até aqui, e Washington.

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