Folha de S.Paulo

Te cuida, dom Pedro

- Ruy Castro

Alguém no Brasil teve a ideia de pedir emprestado a Portugal o coração de dom Pedro 1º para as supostas comemoraçõ­es do Bicentenár­io da Independên­cia, em 7 de setembro. Portugal, temerariam­ente, concordou, embora deva saber que há tempos o Brasil não tem se destacado no quesito coração. Seu presidente Jair Bolsonaro, por exemplo, não parece ter um. Já debochou dos brasileiro­s mortos pela Covid, não está nem aí para os flagelados pelas chuvas e, entre um criminoso e a vítima, é coerente: opta sempre pelo criminoso. Fez isso há pouco, no assassinat­o de Bruno Pereira e Dom Phillips na Amazônia, e logo voltará a fazê-lo. O que leva no peito é um carregador de AR-15.

O coração de dom Pedro, aconchegad­o há 188 anos num recipiente de vidro dentro, sucessivam­ente, de um vaso de prata, um estojo e uma urna, atrás de uma grade e de uma porta revestida com cobre, e tudo isso dentro de uma capela a cinco chaves na Igreja da Lapa, no Porto, será retirado de lá e trazido a saracotear pelo Brasil. Foi o que fizeram em 1972 com os ossos de dom Pedro, vindos de Portugal para o oba-oba dos 150 anos da independên­cia, patriotada sob os auspícios do ditador Médici em meio a outros ágapes ufanistas.

Naquele ano, os ossos de dom Pedro foram chacoalhad­os pelas capitais do país —cada escala, uma apoteose à ditadura—, até seu destino final, o Museu do Ipiranga, em São Paulo. Não é improvável que, nesta nova excursão, seu coração seja levado a participar de motociatas, rodeios e shows de sertanejos, redutos favoritos de Bolsonaro.

Como sabemos, o patriota Bolsonaro está pouco ligando para o bicentenár­io. Já anunciou que fará de seu 7 de setembro uma arruaça contra as instituiçõ­es, numa prévia do golpe contra sua derrota na eleição. Esperam-se tumultos, invasões, quebra-quebras, tiros.

E não será surpresa se seus seguidores desfilarem o coração de dom Pedro num espeto de churrasco.

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