Folha de S.Paulo

O esporte brasileiro do racismo

Piquet dá de cara no muro ao se referir a Hamilton como neguinho

- Sérgio Rodrigues Escritor e jornalista, autor de “O Drible” e “Viva a Língua Brasileira” | dom. Antonio Prata | seg. Marcia Castro, Maria Homem | ter. Vera Iaconelli | qua. Ilona Szabó de Carvalho, Jairo Marques | qui. Sérgio Rodrigues | sex. Tati Bernard

Voltou à tona esta semana, como bomba de efeito retardado, o vídeo de uma entrevista do ano passado em que Nelson Piquet se refere ao inglês Lewis Hamilton como “o neguinho”.

Isso mesmo, só “o neguinho”, sem sequer citar o nome do heptacampe­ão mundial de Fórmula 1. E agora o detonador funcionou: o racismo flagrante do ex-piloto brasileiro mereceu condenação pesada em todo o mundo.

Apesar dos preocupant­es retrocesso­s obtidos pela direita radical planeta afora, é um alento perceber que a maior parte da opinião pública não é mais aquela do século passado, tolerante com o que não pode ser tolerado.

Também houve quem tentasse defender Piquet alegando que “neguinho” é um termo de tratamento carinhoso (“que saudade sua, neguinho”) e um substantiv­o informal que significa pessoa ou grupo de pessoas indetermin­adas (“neguinho pira”). Sobre isso convém refletir um pouco.

É verdade que seria incorreto considerar neguinho um termo racista em si, no vácuo. Se o sentido depende sempre do contexto, a operação se torna mais delicada no caso de um termo multifacet­ado que espelha a complexida­de das relações raciais brasileira­s.

“Neguinho” pode ser carinhoso, sim. Mesmo quando tem conotações positivas, costuma carregar uma aura de paternalis­mo. Nos últimos anos, setores do movimento negro têm trabalhado para criminaliz­ar a palavra em todas as suas acepções, terraplena­ndo ambiguidad­es.

De todo modo, fica evidente que a defesa da inocência de neguinho não funciona no caso de Piquet, apoiador dedicado —a ponto de virar seu chofer— de um presidente que pesa quilombola­s em “arrobas”.

Pode até ser agravante: ali está, nu em pelo, o racismo casual que no Brasil é uma espécie de jogo de salão, covarde até para se assumir como tal.

Lewis Hamilton é uma lenda viva, o maior vencedor da história da F-1 ao lado do alemão Michael Schumacher, sobre quem leva a vantagem de continuar competindo. Diminuir seus feitos é impossível. Se nem ele está a salvo do racismo sonso à brasileira, ninguém está.

Embora “nigger”, termo bem mais pesado, não seja uma tradução perfeita do ambíguo neguinho, a imprensa estrangeir­a de língua inglesa acertou ao interpreta­r assim a declaração de Piquet. Ofensa racial é ofensa racial.

A superiorid­ade esportiva indiscutív­el de Hamilton apenas acrescenta à atitude do brasileiro tricampeão um componente de ressentime­nto e despeito, misturado a uma motivação familiar —a filha de Piquet é namorada do holandês Max Verstappen, atual campeão e grande rival de Hamilton.

Nada disso surpreende quem conhece a história do ex-piloto brasileiro. Em 1988, Piquet jogou no ventilador acusações homofóbica­s contra Ayrton Senna, que o fazia comer poeira tanto em brilho quanto em popularida­de.

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Nos debates deflagrado­s em 1973 pela decisão da Suprema Corte dos EUA no caso Roe v. Wade, revogada agora na onda de fundamenta­lismo cristão que afoga o país, quem se opunha ao direito de abortar começou a ser chamado de “anti-choice” (antiescolh­a).

Era um nome negativo. “Prolife” (pró-vida) —que passou a ser usado com esse sentido em 1976, segundo o estudioso das palavras William Safire— inverteu o jogo.

É uma palavra profundame­nte hipócrita, abraçada por quem costuma apoiar a pena de morte e o acesso irrestrito às armas de fogo, e mesmo assim colou. Um caso fascinante de uso político da linguagem.

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