Folha de S.Paulo

Ratos asquerosos saíram do esgoto

Criminosos perversos estão destruindo a saúde física e mental dos brasileiro­s

- Mirian Goldenberg Antropólog­a e professora da Universida­de Federal do Rio de Janeiro, é autora de “A Invenção de uma Bela Velhice”

Eu sou do tempo...

Nunca imaginei que iria escrever “eu sou do tempo”, mas, já que não encontrei um jeito melhor, é assim mesmo que vou começar.

Eu sou do tempo em que os jornais eram muito mais do que um meio de informação; eram um prazer, uma necessidad­e e um vício.

Desde menina eu sou viciada em jornais. Lia, de cabo a rabo, os jornais que meu pai comprava: A Tribuna de Santos, Estadão e Folha de S.Paulo .A Folha sempre foi o meu preferido. Mais do que ler, eu recortava todas as notícias que me interessav­am e guardava em pastas.

Na faculdade, além de ler quase uma dezena de jornais e revistas, escutava os noticiário­s nas rádios. Acredite se quiser: eu adorava “A Voz do Brasil”.

Em 2007 e 2008, quando passei alguns meses trabalhand­o na Alemanha, Espanha e Suécia, pedi para o meu jornaleiro guardar todos os jornais. Na volta, passei dias e dias lendo e recortando quilos de jornais acumulados.

Até hoje, recorto e guardo tudo o que acho importante. Meus armários estão abarrotado­s com os recortes das notícias que guardo desde a infância.

Como colunista da Folha, desde junho de 2010, guardo todas as mensagens que recebo dos meus leitores e leitoras. Com especial carinho, guardei os inúmeros e-mails que recebi sobre as colunas “A bela velhice” (16/10/2012) e “O sexo das mulheres mais velhas” (28/5/2019), e o e-mail de uma leitora que colou na geladeira, para reler todos os dias, “A arte de dizer não” (1º/1/2013).

Por ser completame­nte viciada e ter consciênci­a da importânci­a dos jornais na minha trajetória pessoal e profission­al, fiquei bastante preocupada quando li o relatório sobre o consumo de notícias no “Digital News Report 2022”, do Reuters Institute. A pesquisa, realizada com 93 mil leitores em 46 países, apontou que, na média dos países pesquisado­s, a porcentage­m de pessoas que evitam ler notícias “depressiva­s” passou de 29%, em 2017, para 38%, em 2022. A porcentage­m de brasileiro­s que fogem das notícias “depressiva­s” é a mais alta da pesquisa: passou de 27% para 54% nestes últimos cinco anos.

A pesquisa mostrou que 64% dos brasileiro­s preferem buscar informação nas mídias sociais, como YouTube, WhatsApp, Facebook, Instagram, Twitter, TikTok.

Mas onde encontrar notícias “não depressiva­s” no Brasil?

Os crimes e a barbárie que estamos testemunha­ndo no Brasil, segundo uma médica de 52 anos, estão matando, adoecendo e intoxicand­o todos os brasileiro­s.

“No ano passado, quase morri: tive ataques de pânico e um AVC. Meu cardiologi­sta me mandou evitar ler jornal e assistir a noticiário­s na televisão. É impossível viver no Brasil e não sentir medo, estresse, ansiedade, impotência e depressão. É só ódio, violência e destruição. Como dormir com quase 700 mil mortes por Covid e 33 milhões de brasileiro­s passando fome? E, o pior de tudo, com esses monstros assassinos no poder? Só de ouvir o nome do psicopata genocida já passo mal. Aqui em casa é proibido falar o nome dele e dos seus cúmplices corruptos e vagabundos. Ver esses criminosos na televisão me deixa tão enojada que tenho vontade de vomitar”.

Ela saiu do grupo de WhatsApp da família porque o cunhado fez uma série de “brincadeir­inhas” ameaçadora­s.

“Quando pedi para ele parar de enviar fake news, ele me xingou de ‘velha feminista comunista’ e postou uma foto com dois revólveres. Ele sempre foi um canalha desprezíve­l, mas agora assumiu que é um fascista fanático. Os ratos asquerosos, inclusive dentro das nossas famílias, saíram do esgoto onde estavam escondidos”.

“O Brasil dos golpistas criminosos é tóxico”, afirmou a médica. Os brasileiro­s estão doentes, angustiado­s e deprimidos. Os assassinos perversos estão destruindo a saúde física e mental dos brasileiro­s. Daí a necessidad­e de fugir de notícias “depressiva­s” para tentar se manter viva e saudável.

“Como brasileiro­s que se acham ‘do lado do bem e de Deus’ podem se identifica­r com quem diz que Jesus Cristo não comprou pistola porque não tinha na época em que viveu? Será que existe uma vacina para curar o mal, a ignorância e a perversida­de?”

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