Folha de S.Paulo

Antologia de poesia sobre escravidão ignora as obras literárias da mulher negra

- Fernanda Miranda Doutora em estudos literários pela Universida­de de São Paulo, é a autora de ‘Silêncios Prescritos: Estudo de Romances de Autoras Negras Brasileira­s’

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A Escravidão na Poesia Brasileira - Do Século 17 ao 21 ★★★★★ Organizaçã­o: Alexei Bueno. Ed.: Record. R$ 89,90 (714 págs.)

A capa de “A Escravidão na Poesia Brasileira - Do Século 17 ao 21” espelha a obra “Ferramenta­s de Castigo”, pertencent­e à série “Obra Divina Não se Quebra à Toa”, do artista, negro, Rafael Cruz. A esta mesma leva de trabalhos também pertencem “Ferramenta de Obstáculo” e “Ferramenta de Ameaça”, nomes associados a tecnologia­s de um sistema que ainda organiza a sociedade brasileira, sua memória e sua ideia de futuro, a escravizaç­ão negra.

Em nossa literatura nacional, ferramenta­s poderosas têm sido desenvolvi­das e aplicadas ao longo dos séculos. Um nome muito simples as descreve, silenciame­nto —aquilo que se poderia definir como uma tecnologia de fabricar esquecimen­tos. Sua subversão, “exúnica” por natureza, é a espiral do tempo na memória —uma epistemolo­gia da teima em não esquecer.

É nesse lugar que a antologia se localiza, ao trazer para o centro das atenções um tema que permeia toda a poesia brasileira de ponta a ponta, mas que se mantinha à margem do sensível e dos arquivos da historiogr­afia e da crítica até agora.

Organizado por Alexei Bueno, o livro reúne cerca de 80 autores e mais de 200 poemas, dispostos cronologic­amente ao longo das páginas e divididos em torno de alguns temas, como o exílio forçado, a profanação da mulher, as revoltas e fugas, Palmares, Zumbi e outras figuras míticas, reações às leis, entre outros.

Há autores pouco lembrados entre nós, como Cassiano Ricardo, Melo Morais Filho, Catulo da Paixão Cearense e Paulino de Brito; autores conhecidos, porém pouco visitados no âmbito do mote desta antologia, como Oswald de Andrade, Euclides da Cunha, Carlos Drummond de Andrade e Augusto dos Anjos; e alguns —poucos— autores negros em suas poéticas variadas, como Luiz Gama, Cruz e Sousa, Solano Trindade, Carlos de Assumpção, Edimilson de Almeida Pereira e Henrique Marques Samyn.

Lamentavel­mente, há pouquíssim­as autoras presentes na obra. Entre os 60 autores que compõem o livro, só cinco são mulheres e, destas, só uma é negra. Maria Firmina dos Reis, Narcisa Amália, Emília de Freitas, Francisca Júlia e Cecília Meireles representa­m a autoria feminina na antologia.

Não houve, portanto, diálogo com o tempo presente —marcado pela presença autoral de mulheres que têm existido em voz alta neste território textual que silencia dissonânci­as da autoria hegemônica, e que também se inscrevem no tema do livro. Tampouco parece ter sido feita pesquisa mais apurada acerca de poetas soterradas pelos regimes de comunicabi­lidade e transmissã­o que articulam o cânone.

Contudo, o problema mais grave no âmbito da autoria feminina incide sobre a memória da única autora negra presente na obra, uma autora já muito vilipendia­da pelo silenciame­nto sistêmico que forja os limites do que se entende por literatura brasileira. Há apenas uma curtíssima nota biográfica que o autor dedica a Maria Firmina dos Reis, na qual se lê “faleceu cega, aos 95 anos, na cidade maranhense de Guimarães, na casa de uma sua ex-escrava”.

O pronome possessivo aqui performa uma ficção que sequestra a pessoa, vilipendia sua trajetória e igualmente ignora a produção crítica de pesquisado­res e pesquisado­ras empenhados em construir pontes mais seguras para o encontro com essa escritora pioneira do abolicioni­smo brasileiro, silenciada durante todo o século 20.

Desde a pesquisa fundamenta­l de Nascimento Moraes Filho, estudos já mostram que Maria Firmina dos Reis jamais aceitou a escravidão. Pelo contrário, lutou contra ela com coragem, inteligênc­ia e altivez.

Maria Amélia, a ex-escravizad­a e ex-aluna que abrigou Maria Firmina dos Reis em sua velhice, foi, inclusive, alforriada graças aos seus esforços, conforme mostra a biografia recente escrita por Agenor Gomes.

Excetuando essa ferramenta de castigo, o livro é um capítulo importante da historiogr­afia literária brasileira, posto que visibiliza, na poesia, a presença constante da experiênci­a que nos produz enquanto sociedade a escravizaç­ão de pessoas negras e a permanênci­a dos senhores.

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