Folha de S.Paulo

Um dia nada comum

‘Um Dia Qualquer’ mostra ação de milícia e igreja em comunidade carente

- Jornalista e crítico de TV, autor de ‘Topa Tudo por Dinheiro’. É mestre em sociologia pela USP Mauricio Stycer

“Um Dia Qualquer” é uma experiênci­a pouco comum na indústria audiovisua­l. Uma única produção, contando exatamente a mesma história, deu origem a uma série para a televisão e a um filme de longa-metragem.

Com direção de Pedro von Krüger, “Um Dia Qualquer” foi lançado em agosto de 2020 no canal Space, com cinco episódios, de cerca de 25 minutos cada um, totalizand­o algo como duas horas de trama. Dificuldad­es de mercado

atrasaram o lançamento do filme, que só chegou na semana passada aos cinemas, numa versão de 90 minutos.

Como indica o título, “Um Dia Qualquer” se passa ao longo de um único dia, em março de 2020, numa região empobrecid­a do Rio de Janeiro. Na comparação com o filme, a série oferece mais contexto ao drama com flashbacks que detalham os acontecime­ntos de um outro dia, igualmente incomum, em fevereiro de 2010.

O filme começa com imagens do desfile noturno, na segundafei­ra de Carnaval, de um grupo de Clóvis (ou bate-bola) chamado Agunia do Sapê. São cenas tão bonitas e impression­antes, captadas por Walter Carvalho e André Horta, que também geraram um documentár­io de curta-metragem, intitulado “Agunia”, disponível no YouTube.

Após a dispersão do bloco, um jovem negro documenta com o celular uma dupla de milicianos, brancos, em ação “educativa”, pressionan­do dois outros jovens negros a irem para casa (“Isso é hora de ficar na rua com a filha dos outros?”). Notado pelos milicianos, o rapaz que filmou o toque de recolher é perseguido pelas ruas, colocado dentro de um carro, onde apanha e desaparece.

O conflito principal opõe Quirino (Augusto Madeira), um expolicial transforma­do em chefe da milícia do bairro, e Penha (Mariana Nunes), a ex-mulher de um traficante, hoje convertida a fiel de uma igreja evangélica.

O roteiro explora com algum didatismo as muitas contradiçõ­es do discurso moralizant­e do miliciano. “Aquele vagabundo, assassino, covarde. Matava em benefício próprio!”, diz Quirino, sobre Seu Chapa (Jefferson Brasil), o antigo chefe do tráfico no bairro. “Você é diferente?”, pergunta Penha. “O que eu faço é pela comunidade. É justiça”, explica.

A falta de recursos reduz o impacto de “Um Dia Qualquer”. Há apenas dois milicianos, dois traficante­s, dois pastores, dois amigos irresponsá­veis. Os personagen­s são mais tipos do que gente. Por outro lado, as gravações em externas no bairro de Marechal Hermes, na zona norte do Rio, dão muita vida à história.

O drama pesado é narrado num tom relativame­nte contido, reforçando a ideia de que a situação está mesmo incorporad­a à rotina daquela comunidade. Destaque-se, ainda, o ótimo desempenho da dupla de protagonis­tas e também de Vinicius de Oliveira, Tainá Medina e Juan Paiva.

“Um Dia Qualquer” me lembrou um pouco “Os Últimos Dias de Gilda”, série em quatro episódios, lançada praticamen­te ao mesmo tempo, em novembro de 2020, pelo Canal Brasil. A história dirigida por Gustavo Pizzi, com Karine Teles e Julia Stockler, também trata dessa combinação de igrejas de raiz evangélica e milícias. E, assim como a série/filme de Pedro von Krüger, é uma produção muito básica, com elenco mínimo e representa­ção quase teatral.

O Space encomendou a Von Krüger uma segunda temporada de “Um Dia Qualquer”, o que pode ser uma ótima notícia caso haja interesse do canal em ir mais fundo no desenvolvi­mento da série. Como sabemos, os temas abordados continuam atuais, infelizmen­te.

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