Folha de S.Paulo

Barato muito louco

Quando deu as primeiras tragadas, sentiu o baque

- Drauzio Varella Médico cancerolog­ista, autor de ‘Estação Carandiru’

O paciente entrou algemado. O funcionári­o que me ajuda no atendiment­o veio com a chave.

O rapaz magrinho se coçava, de dar aflição. Chegou a pedir licença para esfregar as costas contra a soleira da porta. Quando levantei a camiseta surrada que ele vestia, confirmei o óbvio: escabiose.

Desde os tempos do antigo Carandiru, as prisões masculinas que frequentei vivem infestadas de sarna. Nas celas coletivas dos centros de detenção provisória os CDPs, ocupadas por mais de 20 homens à espera de julgamento, o parasita deita e rola. Alojado na pele, causa lesões nas axilas, nas dobras dos dedos, na região pubiana, no pênis e nas nádegas, para depois se espalhar pelo corpo todo. O ato de coçar machuca a pele e serve de porta de entrada para bactérias que formam furúnculos e abscessos.

Pedi que tirasse a roupa.

Era uma infestação tão intensa e generaliza­da, que provocava descamação grosseira da pele. Em vários locais havia feridas infectadas.

Falei que prescrever­ia uma injeção de penicilina, sabonete contra a sarna e dois comprimido­s de ivermectin­a, droga que o deixou assustado: “Eu estou com Covid?”.

Expliquei que ivermectin­a é bom para sarna e inútil para a Covid. Enquanto preenchia a receita, perguntei em que artigo estava enquadrado: “Trinta e três, doutor”.

Mulheres e homens presos evitam falar dos crimes cometidos, preferem se referir a eles pelo número do artigo do Código Penal.

“Maconha ou cocaína?” “O que é isso, doutor? Nunca usei nem mexi com essas coisas.” “O que você traficava?” “Casca de fruta ralada.” “Ô meu! Atendo em cadeia há mais de 30 anos. Você tá me tirando?”

“Não, doutor, com todo respeito. Eu vendia casca de fruta pros maluco fumar na quebrada.”

“E dá barato?”

“Ô se dá. O baguio é doido.” Contou que trabalhara como mecânico dos 15 aos 25 anos numa oficina na Grande São Paulo. Ganhava o suficiente para alugar a casa de dois cômodos em que morava com a mulher e o filho pequeno. Em 2016, quando ele e a mulher ficaram desemprega­dos, a solução foi mudar para a pequena chácara do avô, na periferia de Caieiras.

Para não viver às custas do avô aposentado, fazia o que aparecesse. Foi servente de pedreiro, entregador, carregador, guardador de carro, vendedor de porta em porta e segurança de um desmanche, local em que conheceu o amazonense que veio com a história dos indígenas que fumavam as cascas da tal fruta.

Ele não levou a sério, mas resolveu experiment­ar. Não precisou comprar, na chácara havia quatro pés carregados. Ralou a casca e deixou no sol para secar por três dias. Quando deu as primeiras tragadas, sentiu o baque.

“Doutor, do céu, fiquei leve, solto no ar, na paz, tudo psicodélic­o em volta.”

Daí, para começar a vender “pros maluco” das redondezas, foi um passo. O entra e sai na chacrinha não preocupou o avô, incapaz de entender o gosto daquela gente que comprava casca de fruta.

Comerciali­zava cada saquinho pequeno a R$ 50, quantia de um dia inteiro de trabalho nos bicos que fazia. Comprou roupa para a família, TV nova, brinquedos para o filho, presentes para o avô. A vida melhorou tanto que não fazia sentido procurar emprego.

Um dia apareceu um PM. Queria saber em que lugar estava a plantação de maconha, única justificat­iva para tanto movimento no portão. Trazia dois saquinhos apreendido­s com um usuário.

“Quando expliquei qual era o conteúdo, o homem ficou bravo, ameaçou me bater. Eu insisti, ele continuou duvidando, até que falei para fazer um teste: se ele sentisse o efeito me deixava livre.”

Preparou um cigarro e recomendou ao policial que pegasse leve, porque o “baguio era muito doido”. O conselho não foi seguido. Sem sentir efeito, o PM deu uma tragada atrás da outra, apesar das admoestaçõ­es. De repente: “O barato veio com tudo. O cidadão estonteou, falava que saiu do corpo, que estava ali, mas não estava mais, que as árvores contorciam, que o meu cachorro ria da cara dele”.

O policial descumpriu o trato. Enquadrado no artigo 33, o rapaz aguardava sentença havia cinco meses. Quando eu disse que não seria condenado por vender casca de fruta, e que um advogado conseguiri­a libertá-lo, esboçou um sorriso: “Advogado, eu? Preto e pobre”.

Você, leitor, deve estar curioso para saber que fruta é essa. Pois, vai ficar na curiosidad­e, como eu. Ele não quis contar, alegou segredo de ofício.

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Líbero

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