Folha de S.Paulo

O pior que nos inunda

- Muniz Sodré Professor emérito da UFRJ, autor, entre outros, de “A Sociedade Incivil” e “Pensar Nagô”. Escreve aos domingos

É muito provável que as urnas nacionais acionem hoje a descarga político-sanitária da vigência atual da palavra cambronnia­na. É uma referência infecta, mas recorrente.

Até Marx, que jamais baixava o sarrafo da elegância de linguagem em teoria ou jornalismo, permitiu-se uma vez seu uso: “Scheisse” em alemão, “merda” em português. Notoriamen­te, foi Pierre Cambronne, general de Napoleão, que tornou famosa a expressão, ao responder “merde” à intimação inglesa para render-se em Waterloo.

Sem ser gíria ou palavrão, essa referência chula peca por mau gosto. Seu impacto nas imprecaçõe­s não lhe garante mais nenhuma glória, apesar de algum interesse cognitivo, como evidencia a frase de Steve Bannon, guru do extremismo: “A oposição real é a mídia. E a forma de lidar com eles é inundá-los com nossas merdas”.

Num trecho de “A Ideologia Alemã”, Marx desabafa com essa palavra, argumentan­do que a transforma­ção da consciênci­a massiva dos homens só pode se dar por um movimento prático, a derrubada da classe dominante. Diz então textualmen­te que “a classe revolucion­ária, só graças a uma revolução, poderá libertar-se da velha merda”, ou seja, das condições sociais responsáve­is pela alienação dos trabalhado­res. No século 20, em “Saló”, Pasolini inscreveri­a artisticam­ente o fascismo num repulsivo Ciclo da Merda.

Rebaixamen­tos à parte, a história tem mostrado que o emprego dessa palavra flutua segundo a diversidad­e conceitual de sociedade. Hoje ela chega mesmo a orientar o que a pornocultu­ra entende como laço social. Em 2007, a revista Newsweek publicava o comentário de um executivo da Paramount Pictures a propósito do filme “Jackass-2.5”: “Há mais vômito, nudez e defecação —o tipo de coisa que os consumidor­es realmente querem”.

Essa verdade parcial relativa ao consumo de mídia ajusta-se a uma fatia da realidade afim à lógica do reality-show: uma perversa radicalida­de democrátic­a pautada pela ausência absoluta de qualidades. Na esfera política, isso resvala para a bárbara desqualifi­cação das regras de civilidade. Assim se destampou a fossa de onde saíram Trump e congêneres.

As redes sociais dinamizara­m o fenômeno, de complexo desenho global. A mídia de entretenim­ento é vetor extraordin­ário, mas não está só. Ignorância e passadismo reacionári­o são motores profundos da consciênci­a impermeáve­l ao progressis­mo dos costumes e valores. É a brecha para gente como Bannon e para a matéria-prima da náusea, capaz de fazer do bufão mito. A frase dele, de 2018, ano eleitoral brasileiro, revelou-se funcional. Semanas atrás, porém, o guru foi para atrás das grades, por corrupção. Sinal alvissarei­ro, talvez, do início de descarga democrátic­a do pior que nos inunda.

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