Folha de S.Paulo

O país precisa de bons gestos

Mídia deveria se afastar da polarizaçã­o, mas primeiros sinais não são bons

- José Henrique Mariante

Silvio Almeida escreveu que esta eleição é “particular­mente existencia­l’’. Foi um dos muitos colunistas da Folha que não pouparam tinta nos últimos dias para sublinhar a grande responsabi­lidade do país neste domingo (2). É momento de apertar o botão nas urnas.

Há outra existência particular­mente em jogo neste pleito violento e polarizado: a da mídia, fundamenta­l para a democracia e maltratada como ela por uma fila que começa com o presidente atual, mas também por ação própria.

É razoável a chance de hoje ou em quatro semanas Jair Bolsonaro ter um segundo mandato recusado. Era papel da imprensa desnudá-lo. Sua incompetên­cia e falta de humanidade foram flagrantes na pandemia, para ficar apenas em uma das intoleráve­is atitudes que adotou nos últimos quatros anos. Sairá do poder, se os eleitores assim desejarem, pelo voto, o instrument­o que tanto desqualifi­ca. A escolha majoritári­a, no entanto, não dará fim ao bolsonaris­mo. A depender do comportame­nto dos diversos setores da sociedade, deve em grande medida realimentá-lo.

Bolsonaro dificilmen­te vai reconhecer a derrota. Repetirá Aécio Neves, que não concedeu a vitória a Dilma Rousseff em 2014, para usar um anglicismo. Donald Trump também custou a largar o osso nos EUA em 2020 e deu no que deu. Derrotados no Chile e na Colômbia neste ano demonstrar­am urbanidade. Gestos fazem muita diferença. É de se imaginar que serão raros neste país nos próximos meses. A mídia poderia fazer os seus.

Em entrevista ao Valor, especialis­ta em Venezuela afirmou que a polarizaçã­o política transbordo­u para o tecido social também no Brasil e que o risco dessa trajetória é a desmoraliz­ação da democracia. O problema vem de longe e recrudesce agora ao som de tiros e pauladas. Nos últimos tempos, estava fácil pôr tudo isso na conta do presidente; Bolsonaro praticamen­te empurrou o jornalismo para o outro lado do campo. Sem o autoritári­o, como será?

Os primeiros sinais não são promissore­s. Páginas de opinião reagiram à medida que o favoritism­o de Luiz Inácio Lula da Silva se consolidou. O Estado de S.paulo, na semana passada, em apenas um dia não citou o ex-presidente em seus editoriais. Em três deles, estampou seu nome no título. A Folha se preocupou bem mais com o resto do mundo, que desmoronav­a em notícias, mas não se furtou a dar ampla visibilida­de ao editorial “Tiro no pé”, no último fim de semana, em que cobrou do petista definições sobre política econômica. Esforçou-se também na divulgação do artigo em que Alexandre Schwartsma­n, “Em louvor do voto inútil”, rebaixou Lula ao nível de Bolsonaro. Quem pregou voto útil não recebeu tal tratamento. Oferta no jornal não faltou.

Lula não merece condescend­ência por ser a opção a Bolsonaro, por óbvio, mas a discussão aqui, antes de ser sobre lados, é acerca de disposição. A imprensa foi legitimada a combater o atual presidente por seus atos e tem longo histórico de animosidad­e com o ex, que sempre responde com a antiga ladainha de estabelece­r algum controle sobre a mídia. Basta juntar o presente com o passado para ver que o futuro à polarizaçã­o pertence.

Os efeitos desse processo são deletérios. A imprensa contribui com o acirrament­o de opiniões ao se entrinchei­rar. Isso quando a própria trincheira não vira ganha-pão, monetizada, não importa se via radicalism­os. O país precisa se reconstrui­r em diversas frentes, consensos serão necessário­s. Sem estes, iremos para outros quatro anos de pancadaria.

Seria importante a mídia séria refletir sobre sua responsabi­lidade na condução do debate público. A exemplo do que fez no consórcio de veículos de imprensa diante da absurda desinforma­ção oficial na pandemia. Sobram oportunida­des. Uma campanha maciça pela normalizaç­ão da vacinação infantil, um pool de jornalista­s na Amazônia, um relacionam­ento mais maduro entre imprensa e governo.

O país precisa de todos os gestos possíveis. Apertar o botão é só o primeiro deles.

‘Oi, Folha…’

Felipe Neto resolveu comentar no Twitter notícia da Folha sobre seu pedido de perdão a Dilma Rousseff “por ter propagado o antipetism­o, o discurso golpista e o ódio à esquerda”. Segundo o youtuber, o jornal deveria ter lembrado que as desculpas eram por seu apoio ao “GOLPE”, assim escrito, em maiúsculas. E que o jornal “teve participaç­ão decisiva” na defesa do “GOLPE” à época do impeachmen­t da ex-presidente. “Acho que vocês também devem um pedido de perdão, assim como outros veículos e grandes emissoras.”

A Folha não respondeu ao influencia­dor, que tem 16 milhões de seguidores no Instagram e é cabo eleitoral master de Lula. Deveria ao menos ter registrado a crítica, mas recusou o gesto ao leitor. Leitores precisam de gestos também.

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