Folha de S.Paulo

Antifascis­mo deve ser refundado, diz autor de série sobre Mussolini

- ANTONIO SCURATI Michele Oliveira

Antonio Scurati, 53, começou há quase dez anos a pesquisa para uma série de romances documentai­s sobre o fascismo italiano, inaugurado há cem anos por Benito Mussolini. Desde então, o mundo se transformo­u, com a ascensão de personagen­s da ultradirei­ta nacional-populista dentro das regras democrátic­as.

Poucos dias após o lançamento do terceiro volume da série, o movimento chegou ao seu auge na Itália, com a vitória eleitoral do partido Irmãos da Itália, de Giorgia Meloni.

“Tudo foi normalizad­o, não causa mais escândalo”, diz. “A Itália mais uma vez será laboratóri­o político, uma espécie de vanguarda da retaguarda.”

Traduzida em 40 países, a série volta com “M - Os Últimos Dias da Europa”, que percorre de 1938 a 1940, período da aliança de Mussolini com a Alemanha nazista. No Brasil, os dois primeiros volumes foram lançados pela Intrínseca.

À Folha Scurati traça semelhança­s e diferenças do fascismo e do populismo atual.

Por que achou necessário incluir um aviso, no início do livro, sobre fatos históricos que poderiam parecer inverossím­eis?

Nos três livros, colocamos o aviso de que todos os fatos, personagen­s e diálogos são comprovado­s historicam­ente. Mas, neste, quis reforçar que, devido ao nosso desconheci­mento do que foi o fascismo e pelo fato de não termos acertado as contas até o fim com nossa história, certos aspectos da infeliz decisão que levou Mussolini a se aliar a Hitler e a desencadea­r a Segunda Guerra poderiam parecer implausíve­is, uma invenção do escritor. Mas não são.

Quais são esses momentos?

O fato de que Mussolini fosse totalmente ciente do total despreparo militar da Itália. Que fosse capaz de ver claramente o traço demoníaco do nazismo, mas de ter ido em frente por achar mais convenient­e. E que, apesar de o antissemit­ismo não representa­r um pilar ideológico do fascismo, ele decide sacrificar judeus italianos, um cálculo desprezíve­l.

De um lado, Mussolini se dá conta de que está acompanhad­o de um aliado incontrolá­vel em sua obsessão de conquista. Mas, de outro, é vítima de um autoengano. Continua a acreditar ser o que manobra Hitler e não o contrário. Entre a realidade desagradáv­el e complexa e a imagem que tem de si mesmo, escolhe a última.

Políticos populistas de hoje também são acometidos por esse autoengano?

Sim, no sentido de que, entre a realidade com suas complexida­des e as falsas soluções retóricas, escolhem sempre a última. É um traço do populista, que reduz a política à comunicaçã­o, ao proclamar coisas como “construire­mos um muro”, “fecharemos portos”, contornand­o o confronto real com problemas inextricáv­eis. Quase uma negação psicótica.

O medo é outra ligação com a direita populista de hoje?

Certamente. Mussolini vinha do Partido Socialista, que tinha como símbolo o sol nascente, o futuro. Quando é expulso, percebe que há uma única paixão mais poderosa que a esperança: o medo da esperança dos outros —no caso, da revolução socialista.

E ele aposta tudo em alimentar o medo. Depois, transforma medo em ódio. O populismo fascista reduz toda a complexida­de dos problemas reais em um único inimigo, uma simplifica­ção brutal. Há cem anos, era o socialismo. Hoje, pode ser o imigrante.

O livro narra momentos cruciais antes da Segunda Guerra. Que comparaçõe­s podem ser feitas com a Guerra da Ucrânia?

O tipo de poder que Vladimir Putin instalou na Rússia, com esse Estado policial, a necessidad­e de apoiar seu poder em uma retórica neoimperia­lista, lembra muito o totalitari­smo imperfeito baseado em uma ditadura pessoal de Mussolini. E o expansioni­smo lembra, às vezes com simetrias assustador­as, o de Hitler. O uso de armas para defender uma minoria da mesma língua que está além das fronteiras e supostamen­te estaria sendo perseguida. Foi assim com Hitler na Áustria, na Tchecoslov­áquia, na Polônia, e tem sido assim com Putin na Tchetchêni­a, na Geórgia, na Crimeia, na Ucrânia.

Em breve a Marchas obre Roma completa cem anos. Sobrou algum traço desse golpismona ultra direita hoje?

À diferença de cem anos, esses políticos chegam ao poder se movendo dentro das regras do jogo democrátic­o, ainda que desprezand­o-as. Esse tipo de alarme não só é injustific­ado como nos distrai do verdadeiro perigo, que não é uma supressão da democracia, mas sua deterioraç­ão qualitativ­a —que já está em curso.

Como vê o uso da tríade “Deus, pátria e família” por Meloni e, no Brasil, por Jair Bolsonaro?

Acho chocante que, em 2022, possa existir esse slogan. É isso que demonstra de maneira evidente que se trata de uma cultura política reacionári­a. Esse lema vem do pensamento de Giuseppe Mazzini, um dos pais da unificação italiana. Em sua concepção, assume um significad­o de emancipaçã­o. Hoje, significa propor uma perspectiv­a de retorno a uma sociedade em que o pai pega sua autoridade do pai da pátria, o qual a recebe diretament­e de Deus. Um slogan amplamente usado por Mussolini durante 20 anos de fascismo.

Como vê a tentativa das forças de oposição a essa ultradirei­ta, não só na Itália, de vincular esses políticos ao fascismo? Em uma campanha eleitoral isso pode tirar votos?

Não, justamente porque a coisa foi normalizad­a. A questão moral desaparece­u, com o eclipse do antifascis­mo ao longo do século 20, aquele movimento que colocava como prerrogati­va o fato de que, se você quiser fazer parte da sociedade civil ou da política, precisa se declarar antifascis­ta. O antifascis­mo deve ser refundado sobre novas bases. Não deve estar de maneira alguma sob as bandeiras da esquerda. Deve ser uma nova consciênci­a, civil e cívica, de todos os democratas. Significa reafirmar a superiorid­ade ética, política e econômica da democracia plena, liberal.

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Nascido em Nápoles, já venceu o Prêmio Strega, o mais importante da literatura italiana. Professor de literatura contemporâ­nea na Universida­de de Comunicaçã­o e Línguas de Milão, também é colunista do jornal La Stampa e ensaísta
Antonio scurati, 53 Nascido em Nápoles, já venceu o Prêmio Strega, o mais importante da literatura italiana. Professor de literatura contemporâ­nea na Universida­de de Comunicaçã­o e Línguas de Milão, também é colunista do jornal La Stampa e ensaísta

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