Folha de S.Paulo

Os quatro pilares do plano da China para a independên­cia econômica

Xi Jinping quer tornar o país uma superpotên­cia tecnológic­a autossufic­iente e liderada pelo Estado

- James Kynge, Sun Yu e Leo Lewis Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

LONDRES, PEQUIM E TÓQUIO | FINANCIAL TIMES O nanobistur­i da empresa Tianjin Saixiang pode ser uma forma de cirurgia de precisão, mas é indicativo de uma ampla tendência que está reformulan­do a relação econômica da China com o resto do mundo.

Feito por uma empresa chinesa pouco conhecida, foi projetado para combater o câncer de próstata sem cirurgia invasiva. A Tianjin Saixiang recebeu o título oficial de “pequeno gigante” em 2020, o que significa que se qualifica para tratamento preferenci­al em troca de ajudar a China a subir na escada tecnológic­a.

De acordo com um executivo da companhia, que não quis ser identifica­do, essa versão chinesa de um tratamento de ponta faz parte de um esforço para reduzir a necessidad­e de tecnologia­s médicas importadas. O governo exige que os hospitais locais, sempre que possível, substituam equipament­os médicos estrangeir­os por nacionais, diz o executivo —o que ele avalia como uma bênção.

Em setembro, o dirigente da China, Xi Jinping, fez um discurso sobre a necessidad­e urgente de avanços na tecnologia do país para superar o Ocidente e reforçar a segurança nacional. A experiênci­a da Tianjin Saixiang é um pequeno exemplo da escala da ambição do líder chinês.

Sob Xi —que quase certamente conseguirá mais um mandato em breve—, a China está tentando se tornar uma superpotên­cia tecnológic­a autossufic­iente e liderada pelo Estado, que não dependerá mais tanto do Ocidente.

O objetivo subjacente, dizem os analistas, é construir uma “fortaleza China” —reformular a segunda maior economia do mundo para que possa funcionar com energias internas e, se necessário, resistir a um conflito militar.

Enquanto muitos nos Estados Unidos querem “dissociar” sua economia da China,

Pequim quer se tornar menos dependente do Ocidente, especialme­nte de sua tecnologia.

A estratégia tem quatro troncos principais e, se for bem-sucedida, levará vários anos para ser realizada, dizem analistas.

1. Aposta em tecnologia

Muitas mudanças que estão sendo sinalizada­s enquanto a China se prepara para sediar, no dia 16 de outubro, o 20º Congresso Nacional do Partido Comunista Chinês foram sugeridas há algum tempo ou já estão em andamento. O congresso deve reafirmar e acelerar o ritmo de vários desses desenvolvi­mentos.

As observaçõe­s de Xi ao presidir mês passado uma reunião da Comissão Central para o Aprofundam­ento Abrangente da Reforma, um dos órgãos do partido que ele usa para governar, definiram uma clara visão para a tecnologia.

O desenvolvi­mento de “tecnologia­s centrais” não é algo que possa ser deixado para o livre mercado, mas deve ser liderado pelo governo chinês.

“É necessário fortalecer a liderança centraliza­da e unificada do [...] Comitê Central e estabelece­r um sistema de comando e tomada de decisão autoritári­o [para tecnologia]”, disse Xi, segundo a transmissã­o da TV estatal.

Em um sinal da importânci­a que Xi atribui a essa agenda, ele parece pronto para rechear o novo Comitê Central, que inclui cerca de 200 das mais altas autoridade­s do país, com tecnocrata­s, em vez de burocratas de carreira, segundo análise de Damien Ma, diretor-gerente da Macro Polo, grupo de pensadores nos EUA.

Essas autoridade­s experiente­s em tecnologia serão responsáve­is por supervisio­nar o que representa uma grande aposta: mais de US$ 150 bilhões (R$ 793 bilhões) foram prometidos para estimular o progresso em semicondut­ores.

Em comparação, o plano dos Estados Unidos de distribuir US$ 50 bilhões para apoiar sua própria indústria de semicondut­ores parece muito mais modesto.

Os semicondut­ores são geralmente considerad­os o calcanhar de aquiles da indústria chinesa. Em 2020, o país importou US$ 378 bilhões (R$ 2 trilhões) em semicondut­ores, uma vulnerabil­idade na cadeia de suprimento­s perpetuada pelo fato de 95% da capacidade instalada chinesa ser dedicada à fabricação de tecnologia de ponta.

No entanto, houve alguns avanços notáveis. Soube-se recentemen­te que a SMIC, uma das principais fabricante­s de chips da China, produziu com sucesso um chip de 7 nanômetros, colocando-o apenas uma ou duas “gerações” atrás de líderes do setor, como a TSMC, de Taiwan, e a Samsung, da Coreia do Sul.

Vários analistas, entretanto, dizem que, apesar desse progresso e dos enormes fundos que a China dedicou ao desenvolvi­mento de sua indústria de chips, as metas de autossufic­iência em semicondut­ores são ilusórias. A indústria é tão complexa e interconec­tada que nenhum país pode ficar sozinho.

Uma segunda vertente dos esforços chineses para alcançar a autossufic­iência tecnológic­a vem em duas áreas interrelac­ionadas —a seleção pelo Estado de potenciais campeões, como a Tianjin Saixiang, e o apoio do governo a um forte impulso em capital de risco.

Mas também nisso os analistas estão pessimista­s quanto à eficácia a longo prazo das tentativas de Pequim de “escolher vencedores”. Um assessor do governo chinês, que não quis ser identifica­do, diz que vários aspectos do plano dos “pequenos gigantes” são falhos.

O assessor diz que a melhor maneira de identifica­r campeões é seguir a regra da sobrevivên­cia do mais apto. Segundo ele, qualquer empresa de alta tecnologia que cresça com a concorrênc­ia deve ser vista como uma candidata a “pequena gigante”, o que não pode ser predetermi­nado pelo governo.”

2. Energias renováveis

Na intersecçã­o da geopolític­a com a tecnologia encontrase outra grande vulnerabil­idade para a China —a oferta de energia.

Com a atual taxa de autossufic­iência energética do país em cerca de 80%, isso deixa quase 20% da oferta —sobretudo em forma de petróleo e gás importados— relativame­nte vulnerável a choques externos.

A China está particular­mente preocupada com as rotas de navegação através de pontos de estrangula­mento, como o estreito de Malaca, onde o poderio naval dos EUA permanece supremo.

Michal Meidan, diretor do Instituto para Estudos de Energia de Oxford, diz que Pequim está adotando um foco maior em energias renováveis, como solar e eólica, como parte da solução.

Analistas dizem que a China está a caminho de alcançar um plano nacional para obter cerca de 33% de sua energia de fontes renováveis até 2025. Mas levará muitos anos para que sua vulnerabil­idade na importação de petróleo e gás seja atenuada, acrescenta­ram.

3. Alimentos-chave

Uma dependênci­a mais séria do mundo exterior está na produção de alimentos.

A segurança alimentar da China despencou nas últimas três décadas, à medida que sua população cresceu e o uso da terra agrícola mudou de grãos para culturas mais lucrativas. Em 2021, apenas 33% da demanda total do país pelos três principais óleos alimentare­s —de soja, de amendoim e de colza— foram atendidos pela produção doméstica, abaixo dos 100% no início da década de 1990.

Embora sucessivos líderes chineses tenham enfatizado a importânci­a vital da segurança alimentar há anos, analistas acreditam que a linguagem e o tom endurecera­m sob Xi. A segurança alimentar e a segurança nacional foram claramente relacionad­as por líderes importante­s, e o objetivo da autossufic­iência alimentar básica foi cada vez mais descrito em termos semelhante­s a outras ambições da “fortaleza China”.

As principais políticas sobre a produção de grãos se concentram em elevar a produtivid­ade, proteger as terras aráveis, o uso mais eficiente da água e outros grandes projetos de economia de água. A China pretende manter sua autossufic­iência nos principais grãos, que atingiu mais de 95% em 2019.

Mas a política mais importante, segundo a analista Trina Chen, do Goldman Sachs, é o plano de revitaliza­ção da indústria de sementes, que Xi promoveu pela primeira vez em 2021 e que exige maiores esforços para alcançar a autossufic­iência.

O ponto de inflexão será a primeira geração de sementes geneticame­nte modificada­s no país —uma mudança que tem enfrentado forte resistênci­a, mas que os analistas agora consideram inevitável.

4. O dólar como arma

Os cálculos da “fortaleza China” também podem ser vistos na atitude chinesa em relação ao domínio do dólar. Para Pequim, uma das caracterís­ticas mais alarmantes das sanções ocidentais à Rússia foi a exclusão de algumas de suas instituiçõ­es financeira­s do Swift, sistema global de mensagens que é central para as compensaçõ­es internacio­nais.

A vulnerabil­idade a esse tipo de sanção surge porque cerca de três quartos do comércio chinês são faturados em dólares —o que significa que dependem do acesso ao Swift.

A solução de Pequim só pode ser a longo prazo. Seus esforços para “internacio­nalizar” o yuan tiveram sucesso limitado até agora, e os planos de promover uma moeda digital —que dispensa o uso de plataforma­s como a Swift— têm sido lentos.

“A curto prazo, Pequim se esforçou para não cair em conflito com as sanções ocidentais impostas à Rússia pela invasão da Ucrânia, mas também seu foco na dissociaçã­o do dólar se acentuou”, diz Diana Choyleva, economista­chefe da Enodo Economics, em Londres.

A curto prazo, Pequim se esforçou para não cair em conflito com as sanções ocidentais impostas à Rússia pela invasão da Ucrânia, mas também seu foco na dissociaçã­o do dólar se acentuou

Diana Choyleva, economista

 ?? Selim Chtayti - 30.jun.22/afp ?? O dirigente chinês, Xi Jinping, discursa no evento de celebração dos 25 anos da retomada do controle sobre Hong Kong
Selim Chtayti - 30.jun.22/afp O dirigente chinês, Xi Jinping, discursa no evento de celebração dos 25 anos da retomada do controle sobre Hong Kong

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