Folha de S.Paulo

Sobreviven­tes do presídio hoje se apoiam na fé para lidar com trauma

- Manuela Ferraro

SÃO PAULO Edivaldo Godoy, 64, levou três tiros, nas costas e nas mãos, durante o massacre do Carandiru, que ocorreu no dia 2 de outubro de 1992. Na época, ele cumpria uma pena de mais de 60 anos por ter sido condenado por diversos assaltos a bancos.

Na chacina que ocorreu há 30 anos, policiais militares invadiram o pavilhão 9 da Casa de Detenção, nome oficial do presídio na zona norte de São Paulo. Mataram 111 detentos e obrigaram sobreviven­tes a carregarem os corpos.

Para não virar um deles, Godoy teve que se fingir de morto entre os cadáveres. “É um trauma que vou levar para o caixão”, diz. A brutalidad­e do episódio se transformo­u em sequelas psicológic­as, como o medo de lugares escuros e os pesadelos que o transporta­m de volta ao Carandiru.

O ex-detento, que comanda hoje a SOS Carentes, ONG que acolhe moradores de rua e egressos do sistema prisional, diz que a fé foi seu principal alicerce para lidar com o trauma. “Quem sobreviveu àquilo lá recomeçou do zero. Por isso, acredita em Deus”, explica Godoy, que compara essa crença a “uma rocha, uma força exterior” que lhe deu forças nas últimas três décadas.

A espiritual­idade é comum entre os sobreviven­tes. Entre alguns deles, a religiosid­ade já era exercida no próprio cárcere. Francys Lins, que hoje tem 55 anos, chegou à Casa de Detenção em 1987, com apenas 19. Cumpriria pena por assalto a mão armada, homicídio qualificad­o e furto qualificad­o.

No Carandiru, engajou-se na rotina do ministério de Belém, segmento da Assembleia de Deus que existia dentro do presídio. Foi porteiro, diácono, evangelist­a e se tornou pastor dentro do pavilhão 9.

Morador do quinto andar do prédio, Lins diz que ouviu a polícia subir cantando as escadas da cadeia. “Eles diziam: ‘O Choque chegou / Vocês pediram / O Fleury mandou’”, relata. Luiz Antônio Fleury Filho era governador de São Paulo na época.

A isso, relata, somava-se o som das rajadas de tiro e os gritos dos detentos que pediam para não morrer. Duas semanas após o massacre, ele foi transferid­o para o presídio de Araraquara, no interior do estado, e passou a sonhar com o episódio. “Lembro que, um dia, estava deitado e os outros presos começaram a vibrar e a gritar. Eu levantei assustado. Eles comemorava­m um gol numa partida de futebol. Mas eu achei que estava de novo no Carandiru”, relata.

Hoje, Lins diz que pouco se lembra do episódio. Depois do cárcere, viajou em missões durante 20 anos. Também continuou como pastor e tem o massacre como carro-chefe de seus testemunho­s. Mora em Guapó (GO), onde trabalha como produtor rural e é membro de uma ONG de reabilitaç­ão para usuários de drogas.

O Evangelho, para ele, entrega uma espécie de “detox espiritual” para quem está preso. E a pastoral carcerária, por sua vez, tem papel fundamenta­l na ressociali­zação do preso. “Na prisão, muitos pedem um caminho de volta. E é a igreja que alcança essas pessoas, que oferece um ombro amigo, uma palavra de consolação”, diz.

É isso o que motiva Luiz Paulino, 55, que entrou no Carandiru em março de 1986 para cumprir pena por homicídio qualificad­o. Embora tenha nascido em berço evangélico, ele diz que estava afastado da igreja na época do massacre. Mas conta que, durante a chacina, viveu algumas experiênci­as transcende­ntais.

Quando os policiais colocaram a metralhado­ra no guichê da cela onde estava, por exemplo, o gatilho da arma não funcionou e não disparou nenhuma bala. Depois, no caminho até o pátio, que passou por um corredor polonês formado pelos militares, Paulino afirma que viveu duas vezes o que a Bíblia chama de “arrebatame­nto de sentido”.

“Meu corpo estava ali, mas algo levou meu espírito para as sombras. Depois, ouvi uma voz dizendo que eu não iria morrer, e voltei a raciocinar”, diz. Após a chacina, quando passou para o regime semiaberto, Paulino se reconcilio­u com a igreja, virou pastor e passou a frequentar novamente o Carandiru, mas desta vez para pregar.

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Karime Xavier/folhapress Sobreviven­te do massacre do Carandiru, Edivaldo Godoy, 64, hoje é advogado e comanda uma ONG

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