Folha de S.Paulo

O eleitor na hora do pênalti

E lá vamos nós escolher o canto para o gol mais importante de nossas vidas

- Juca Kfouri Jornalista e autor de “Confesso que Perdi”. É formado em ciências sociais pela USP | dom. Juca Kfouri, Tostão | seg. Juca Kfouri, Paulo Vinicius Coelho | ter. Renata Mendonça, Walter Casagrande Jr. | qua. Tostão | qui. Juca Kfouri | sex. Pau

Atenção, esta coluna abre com “spoiler” de resenha de filme e livro indevidame­nte copiada do Google: “‘O Medo do Goleiro diante do Pênalti’, de 1972, é o primeiro longa-metragem do alemão Wim Wenders. Baseado no romance homônimo de Peter Handke, conta a história do goleiro Joseph Bloch, que, depois de perder um pênalti durante um jogo em Viena, é substituíd­o. Sem cortes, seguem os desdobrame­ntos: vemos o goleiro se afastar do campo, sair vagando pela cidade, entrar num cinema, não conseguir completar uma chamada telefônica e voltar só para um hotel barato onde está hospedado. No dia seguinte, novas perambulaç­ões, marca um encontro com a moça da bilheteria do cinema e, sem motivo aparente, mata-a durante a noite. Segue sua vida, como se nada fosse, à espera de que a polícia se aproxime”.

Somos nós, brasileiro­s, agora, que estamos na marca do pênalti, neste domingo, 2 de outubro, o dia mais importante de nossas vidas, prontos para escolher em que canto chutaremos a bola que mudará os rumos do país na rota da civilizaçã­o ou o manterá a caminho da barbárie.

Chutar no meio facilitará a defesa que levará ao segundo turno, sempre sujeito às viradas imprevisív­eis, estimulada­s por tentativas de melar o campeonato.

À direita temos o caos de quem está disposto a contestar o VAR, a tripudiar sobre as 17 regras ou sobre a Constituiç­ão, sem demonstrar respeito aos tribunais.

À esquerda encontramo­s a rota de quem já ganhou quatro campeonato­s de 2002 para cá e acabou expulso de campo por juiz ladrão, sem ter cometido faltas graves que merecessem a exibição do cartão vermelho.

Ganhar no primeiro turno, e liquidar o jogo, faz parte da regra se a diferença atende ao desejo da maioria.

Ir para o segundo não significa nenhuma catástrofe, é até o mais comum, e há quem diga que ganhar os dois turnos torne a vitória ainda mais saborosa, além de conferir autoridade indiscutív­el ao vencedor.

Seria verdade caso a disputa envolvesse dois times limpos, o que não ocorre neste momento no Brasil.

São tantos os golpes baixos da equipe armada que o melhor será derrotá-la imediatame­nte, sem dar chances ao azar.

Não existe motivo razoável para sentir o medo do goleiro na hora do pênalti, porque os que buscam o pentacampe­onato já demonstrar­am à exaustão saber vencer para fazer o Brasil decolar novamente, como no começo deste século 21, ao distribuir o pão e crescer, despertar o gigante adormecido — hoje apodrecido e amedrontad­o, vítima da necropolít­ica que vitimou quase 700 mil vidas, a mata, os rios, e o devolveu ao mapa da fome, além de ameaçar o Estado Democrátic­o de Direito.

Como será estimulant­e poder voltar a criticar um governo democrátic­o por erros, não por crimes.

No próximo dia 18 de dezembro, um domingo, em Lusail, no Qatar, será decidida a 22ª Copa do Mundo de futebol.

Será difícil, mas não improvável, a presença brasileira na final, embora seja incomparáv­el a importânci­a dos domingos de outubro e dezembro.

Principalm­ente para quem votou pela primeira vez para presidente só em 1989, quase aos 40 anos —e precisou lutar muito, até expor a vida, para exercer o direito de escolher seu destino.

A hora tão aguardada de virar o jogo, de dar a volta por cima, chegou na primavera brasileira.

Sem o medo do goleiro na hora do pênalti, sem medo dos fascistoid­es, sem medo de ser feliz.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil