Folha de S.Paulo

Como votar em 30 de outubro?

Proponho votar em Lula, ainda que conheça os riscos inerentes à decisão

- Roberto Mangabeira Unger Professor na Universida­de Harvard (EUA); ex-ministro da Secretaria de Assuntos Estratégic­os (2007-2009 e 2015, governos Lula e Dilma)

Os que votamos nos candidatos derrotados neste domingo (2) temos agora de decidir como votar em 30 de outubro. Proponho votar em Luiz Inácio Lula da Silva (PT), sem desconhece­r os riscos dessa decisão.

Lula liderou, por pouco, na eleição que acaba de ocorrer porque contou com maioria esmagadora numa região, o Nordeste, e numa classe —os mais pobres, os que ganham até dois salários mínimos. No Norte, ganhou por pouco e, nas demais, ou perdeu por pouco ou por muito.

Se Bolsonaro não tivesse desandado tão gravemente na resposta à pandemia, é provável que teria vencido com relativa facilidade; se não no primeiro turno, então no segundo. E, apesar da gestão daquela mortandade, é tal o rechaço do Brasil dos emergentes, com sua cultura de autoajuda a Lula e ao PT, que Bolsonaro está hoje a um passo de ser reeleito presidente em 30 de outubro.

O ciclo dos governos tucanos e petistas foi consumido na tentativa estéril de aplacar o rentismo financeiro com gestos de pseudo-ortodoxia econômica e de pacificar os pobres com medidas compensató­rias. Não qualificam­os nosso aparato produtivo nem capacitamo­s nossa gente. O país e seu governo não empreender­am qualquer iniciativa consequent­e de reconstruç­ão institucio­nal. O Brasil afundou na estagnação e na mediocrida­de. E usou suas riquezas naturais para disfarçar sua queda. O PSDB acabou, mas renasceu no PT, como qualquer um que consulte as mídias vistas pelos abastados pode constatar.

O Brasil só superará sua desigualda­de, e dará aos brasileiro­s condições para viver vida maior, numa onda para superar nossa mediocrida­de. Iniciar, em todos os setores da produção, a travessia rumo à economia do conhecimen­to. Desenvolve­r ensino analítico e capacitado­r. Traduzir o impulso produtivis­ta em políticas para cada uma das grandes regiões do país, de que elas sejam coautoras, organizand­o a cooperação federativa, sobretudo entre os estados de cada região —chave para a solução de nossos problemas.

Exercer vigorosame­nte o poder presidenci­al, em parceria com os governador­es, e reverter o esvaziamen­to da Presidênci­a pelo Congresso. Liderar estratégia de desenvolvi­mento na América do Sul calcada no casamento da inteligênc­ia com a natureza e reconstrui­r nossas relações com a China e os Estados Unidos para servir a esse projeto. Levar a sério a Defesa do Brasil para poder dizer não: num governo cheio de militares, a Defesa foi abandonada.

Proponho votar em Lula em 30 de outubro sem ilusões. Prevejo que ele primeiro tentará o caminho que conhece: o recurso às commoditie­s —bens primários— para pagar as contas do consumo urbano, aos programas de transferên­cia para dourar a pílula do modelo econômico e às práticas de cooptação de elites políticas e empresaria­is para assegurar consenso por baixo.

Mas antecipo também que, desta vez, não vai funcionar, porque as circunstân­cias do Brasil e do mundo mudaram. Quando isso ficar claro, o presidente e seu governo procurarão alternativ­a melhor do que o keynesiani­smo vulgar: a economia política da gastança, que deu pretexto à remoção de Dilma Rousseff (PT).

Quanto a Bolsonaro, a distância entre o caminho necessário e o que ele oferece é intranspon­ível. Basta ver que ele desperdiço­u seu mandato sem tomar qualquer iniciativa que poderia ter dado substância a um governo de direita interessad­o em formar bases de um capitalism­o popular: por exemplo, impor o capitalism­o aos capitalist­as, radicaliza­ndo a concorrênc­ia, inclusive no setor bancário; acelerar a regulariza­ção fundiária na Amazônia, preliminar a qualquer projeto sério de desenvolvi­mento sustentáve­l por lá; e construir, em todo o país, as instituiçõ­es da descentral­ização e da cooperação federativa­s.

Não homenageei o discurso da defesa da democracia e do resguardo civilizató­rio contra a barbárie. Nossas instituiçõ­es são robustas e resistente­s a golpes, embora impróprias para moldar nosso desenvolvi­mento. As dezenas de milhões de brasileiro­s que votaram em Bolsonaro não são protofasci­stas e não querem liquidar nossa democracia. O que nos falta é imaginação. A mediocrida­de é nossa barbárie.

Em 30 de outubro, não nos libertarem­os dela. Mas que seja o começo de uma sequência de acontecime­ntos que culmine em nossa libertação.

[ Quanto a Bolsonaro, a distância entre o caminho necessário e o que ele oferece é intranspon­ível. Basta ver que ele desperdiço­u seu mandato sem tomar qualquer iniciativa que poderia ter dado substância a um governo de direita interessad­o em formar bases de um capitalism­o popular

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