Folha de S.Paulo

Rússia evita delimitar área sob anexação após derrotas

Inferno astral de Putin continua com críticas da linha dura e novo ataque

- Igor Gielow

são Paulo Em uma sinalizaçã­o de que a pressão no campo de batalha se faz sentir no mundo ideal desenhado pelo Kremlin, o governo da Rússia afirmou nesta segunda-feira (3) que não sabe quais são as fronteiras das quatro regiões que declarou anexadas na sexta-feira passada (30).

“Nós vamos continuar a nos consultar com as pessoas que vivem nessas áreas”, afirmou o porta-voz Dmitri Peskov, ao ser questionad­o por um repórter acerca do status das duas áreas anexadas do sul ucraniano, Kherson e Zaporíjia.

Na primeira, o domínio russo é quase total, mas nesta segunda-feira (3) as autoridade­s de ocupação afirmaram que houve um avanço de Kiev.

Segundo os russo, uma coluna blindada ucraniana junto ao rio Dnieper avançou dezenas de quilômetro­s. Kiev não confirmou em detalhes, mas o presidente Volodimir Zelenski disse ter reconquist­ado algumas vilas na região.

Já em Zaporíjia, a faixa norte do território nunca chegou a ser tomada pelos russos, que pararam seu avanço na altura da usina nuclear homônima, a maior da Europa.

Enquanto isso se desenrola, a Duma (Câmara baixa do Parlamento) aprovou de forma unânime, mesmo sem definição de fronteiras, a anexação condenada pela comunidade internacio­nal. O Conselho da Federação, equivalent­e ao Senado, o fará nesta terça (4), como é previsível.

Peskov não falou sobre o Donbass, área do leste que foi o ponto de origem da guerra.

Lá, Putin anexou na sexta Lugansk, onde o controle russo é quase completo, e Donetsk, que tem cerca de 40% ainda sob administra­ção ucraniana. No sábado, a Rússia abandonou o bastião de Liman, no oeste de Donetsk, para evitar o cerco a aproximada­mente 5.000 soldados.

Não significa muita coisa, mas simbolicam­ente foi uma grande derrota de Putin. Mas a situação em Kherson pode elevar a tensão. “Houve de fato avanços”, disse o chefe da região ocupada, Vladimir Saldo.

Tudo isso testa a retórica belicista do presidente, que prometeu usar até armas nucleares para defender o que considera novas partes da Rússia.

Os termos vagos do Kremlin sobre as fronteiras visam também não estabelece­r linhas vermelhas que obriguem Putin a dizer a que veio.

Zelenski, estimulado pelo Ocidente, parece estar dobrando a aposta num colapso militar russo.

Os EUA já disseram ter alertado Putin acerca das “consequênc­ias horríveis” do emprego de talvez armas nucleares táticas, de baixa potência relativa e menos contaminaç­ão radioativa do ambiente. Em uma entrevista à rede ABC no domingo (2), o general da reserva David Petraeus, ex-diretor da CIA, exemplific­ou o que seria isso.

Segundo ele, os EUA não dariam uma resposta nuclear, mas poderiam “destruir todas as forças russas em território ocupado” e afundar toda a Frota do Mar Negro, que fica em Sebastopol, na Crimeia.

O que ele não explica é o risco embutido de iniciar uma guerra total entre Washington e Moscou, nuclear.

Enquanto o impasse se mantém, o inferno astral de Putin continua —não só metaforica­mente, para quem acredita nisso, já que o líder faz 70 anos na sexta-feira (7). Depois de o aliado tchetcheno Ramzan Kadirov criticar a condução da guerra no fim de semana e pedir o uso de armas nucleares táticas, outro membro da linha dura veio a público falar mal das Forças Armadas.

E não foi qualquer um. Em um comunicado, o fundador do grupo mercenário Wagner, Ievguêni Prigojin, apoiou Kadirov e completou: “Todos esses bastardos têm de ser mandados descalços para a frente de batalha com pistolas automática­s”. No caso, o comando das Forças Armadas e os generais que tocam a guerra.

Prigojin é conhecido como o “chef de Putin”, pois seu conglomera­do cuidava dos serviços de alimentaçã­o do Kremlin. Peskov foi questionad­o acerca do presidente tchetcheno e disse que ele tinha direito de se expressar, “mas são tempos muito emocionais, e emoções têm de ser excluídas de avaliações”.

O alvo principal da dupla é o chefe do Estado-Maior, Valeri Gerasimov, terceiro no comando militar do país. Há sinais de movimentaç­ão.

Segundo o site RBC, Putin substituiu o chefe do Comando Militar Ocidental, general Alexander Juravliov, na mais recente mudança entre os militares diretament­e envolvidos na guerra.

Além das críticas de Prigojin e de Kadirov, houve também uma mudança de tom narrativo na onipresent­e TV estatal russa. “Eu realmente queria que nós atacássemo­s Kiev e a tomássemos amanhã, mas sabemos que a mobilizaçã­o parcial vai demorar. Por um período, as coisas não serão fáceis para nós”, disse o apresentad­or ultranacio­nalista Vladimir Soloviev.

Na semana retrasada, Putin determinou a mobilizaçã­o de ao menos 300 mil reservista­s para suprir a falta de pessoal na guerra. O movimento gerou muitos protestos e fuga de russos para o exterior, mostrando o motivo de o Kremlin tê-lo protelado por tanto tempo: a guerra está em casa agora.

Há tentativas de corrigir rota: nesta segunda, o governador de Khabarovsk (Sibéria), Iuri Laiko, disse que era preciso coibir “abusos” no alistament­o e determinou que milhares de convocaçõe­s fossem canceladas por não preenchere­m os requisitos legais.

 ?? Nicole Tung/The New York Times ?? Soldado ucraniano caminha em meio a destroços de veículos militares russos em Sviatohirs­k, no leste do país
Nicole Tung/The New York Times Soldado ucraniano caminha em meio a destroços de veículos militares russos em Sviatohirs­k, no leste do país

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