Um país, dois destinos
A urna é soberana e definirá o futuro que sonhamos
Sábado passado foi um dia inquietante para os brasileiros, no qual euforia e medo se alternaram. No meio de uma expectativa de proporções mundiais, já que as eleições no Brasil são parte importante do xadrez entre extrema direita e o resto, resolvi ir ao cinema. Ao sair da sessão, atravessei a rua e entrei num restaurante que não conhecia. Embora eu estivesse desarvorada, algo se passou nesse circuito cinema de ruajantar. Algo que me permitiu olhar de relance para um país que pode, se quiser, ser coerente com sua população, majoritariamente não branca.
Saí do filme “Marte Um”, com roteiro e direção de Gabriel Martins, um jovem preto, com elenco de atores pretos, e me dirigi ao restaurante Preto do chef Rodrigo Freire, outro jovem talentosíssimo e preto. O filme retrata uma família de classe média, socialmente inserida, estruturada, com acesso à educação, trabalho e sistema de saúde. Trata-se da parcela da população que ascendeu nos governos anteriores e que viu os jovens alcançarem o ensino superior.
A mãe, empregada doméstica, e o pai, porteiro, são sucedidos por uma filha cursando direito e um menino almejando ir mais longe, no caso, Marte. A questão racial jamais é citada pelos personagens, o que poderia tornar o filme insustentável num país como o nosso. Mas não se trata de uma colagem artificial, na qual atores negros interpretam papéis usualmente dados aos brancos. De fato, a problemática racial é onipresente.
A angústia de Tércia, a mãe —magistralmente interpretada por Rejane Faria—, é exemplar daquilo que os trabalhadores da saúde mental vêm denunciando: os efeitos da patologia social sobre o indivíduo. Intuindo o “som ao redor” que ameaça sua família com a eleição de Bolsonaro, e que Gabriel Martins aponta de forma sutil, mas inequívoca, ela se pergunta se a ameaça que pressente é fruto da própria cabeça, do azar ou de encosto. A personagem é grande candidata a um diagnóstico de ansiedade, pânico ou afins, sacado às pressas do DSM. Tércia, no entanto, encontrará saída mais promissora para o cruzamento entre os males sociais e suas questões pessoais. Que seu insight —não gosto de spoiler— nos sirva de guia nesse momento.
O Brasil que se vislumbra nesta fresta, no espaço de um quarteirão entre o cinema e o restaurante, tem os negros —maior parte de sua população— vistos e tratados como cidadãos. Sendo um cinema de rua, o simples fato de andar a pé à noite também remete ao tipo de país que podemos construir, caso escolhamos caminhos que diminuam as injustiças sociais e, consequentemente, as violências urbanas. O ato de caminhar pelas ruas em segurança, que os brasileiros costumam elogiar em outros países, não é fruto do cidadão armado ou do policiamento ostensivo, mas da inclusão social representada aí.
Nos 50 metros que vão do Cine Sala ao restaurante Preto, o Brasil do presente se impõe também. Nele, um senhor constrangido pede na casa de massas algo para comer, ao que o atendente responde de imediato trazendo-lhe um embrulho, para alívio dele, e de quem assistia à cena. Um jovem fala seu mantra monocórdico, repetido à exaustão, para justificar que alguém vá ao supermercado e lhe traga um chocolate que possa vender. Uma mulher maltrapilha desce perigosamente a rua entre os carros, falando coisas desconexas. Uma casa improvisada no meio fio, cheia de adereços meticulosamente garimpados, é habitada por um senhor que se lava às vistas dos transeuntes.
Sofremos, quando nos deparamos com o fato de que ainda somos um país que simpatiza com o autoritarismo e passa pano para a injustiça e para a violência social. Mas sofremos ainda mais quando preferimos acreditar na nossa bolha, porque é nessa hora que nos tornamos impotentes e adoecemos. Se chegar a Marte requer muito esforço, então, não há um segundo a perder.