Assistência a mães solo com câncer deve considerar questões sociais
Chances de diagnóstico tardio crescem por falta de acesso a consultas e exames, dizem especialistas
Cerca de 11 milhões de mulheres são mães solo no Brasil, sendo que 7,8 milhões (61%) são negras e, entre elas, 63% estão abaixo da linha da pobreza, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Nesse contexto, as chances de diagnóstico tardio de câncer aumentam pela falta de acesso a consultas e exames no SUS (Sistema Único de Saúde), e o tratamento exige que a equipe se atente também para questões sociais.
Com a mediação de Joyce Ribeiro, apresentadora do Jornal da Tarde, da TV Cultura, médicas e pacientes discutiram desafios do tratamento oncológico para mães solo em painel realizado durante o 9º Congresso Todos Juntos Contra o Câncer, promovido pela Abrale (Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia) entre 27 e 29 de setembro.
A vulnerabilidade social está diretamente ligada à origem das doenças, afirma Ana Amélia Almeida Viana, oncologista especializada em tumores femininos do Hospital das Clínicas da UFBA (Universidade Federal da Bahia).
Mães solo, exemplifica, nem sempre têm condições de praticar atividades físicas e ter boa alimentação por sobrecarga de tarefas, falta de tempo para cuidar de si mesmas e condições financeiras insuficientes. Consequentemente, ficam mais expostas a fatores de risco para câncer.
Outro problema é a falta de acesso de mulheres negras e periféricas, principais usuárias do SUS, a consultas e exames como a mamografia, fundamental para identificar tumores em tempo hábil.
Assim, elas também ficam sujeitas ao agravamento das doenças, explica Denize Ornelas, médica de família e comunidade e coordenadora do grupo de trabalho de saúde da população negra da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade.
Ao chegar ao serviço de saúde, o grupo não tem queixas levadas a sério por causa do estereótipo de que negras sentem menos dor, diz ela.
O sofrimento físico precisa ser visto como consequência de problemas sociais como fome e violência, afirma Ornelas. Para terem uma abordagem interseccional no atendimento de mães solo, profissionais de saúde devem conhecer o impacto das desigualdades causadas por racismo e vulnerabilidade social.
Melissa Medeiros, 51, fundadora da ACBG Brasil (Associação Brasileira de Câncer de Cabeça e Pescoço) e sobrevivente de câncer de laringe, reforça a importância do acolhimento de mães solo considerando seu contexto.
Por serem arrimo de família, elas não podem parar de trabalhar. Um atendimento humanizado, para garantir a continuação do tratamento, deve incluir, afirma, questões como deslocamento.
A estudante de enfermagem Itaciara Monteiro, 36, paciente de leucemia mieloide crônica, conhece o impacto do câncer em famílias sustentadas por mães solo por perspectivas diversas.
Como filha, viu a mãe deixar o emprego para acompanhála de Manaus (AM) a São Paulo em busca de tratamento —o pai ficou responsável por cuidar do filho caçula, mas eles se divorciaram logo depois.
A separação levou à queda da renda, e Itaciara precisou trabalhar para ajudar no sustento de casa e no custeio de medicações. Hoje, como mãe solo de um menino de 13 anos, ela é a principal responsável por cuidar de si e do filho.
A contadora Cristiana da Silva Gomes, 44, diagnosticada em 2018 com câncer de mama, fez cirurgias, quimioterapia, radioterapia e, nesse período, contou apenas com os cuidados do filho, hoje com 18 anos.
Segundo especialistas, faltam inclusive estudos com recorte racial para que o câncer seja rastreado de forma eficaz entre mulheres negras.
Ana Amélia Almeida Viana, também membro da SBOC (Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica), diz que, embora a população negra seja menor nos EUA do que no Brasil, os americanos produzem mais pesquisas sobre adoecimento com recorte racial, inclusive relacionadas ao câncer.
Isso permite verificar a incidência da doença com mais profundidade, diz. Em sua fala, a oncologista mostrou que, nos EUA, mulheres negras estão mais expostas a agentes como a bactéria H. pylori, gatilho para tumores no estômago. Esse tipo de informação, no Brasil, ajudaria no mapeamento de sintomas e melhoraria desfechos clínicos.
“Mães solo, negras e periféricas enfrentam problemas para fazer mamografia e ter suas queixas ouvidas por causa do estereótipo de que sentem menos dores
Denize Ornelas médica de família e comunidade