Folha de S.Paulo

Livro ‘Um País Terrível’ adentra Rússia de Putin em trama tensa

Romance evidencia as contradiçõ­es e os problemas do país em narrativa com um viés autobiográ­fico e crítico

- Irineu Franco Perpetuo

Um País Terrível ★★★★☆ Autor: Keith Gessen. Trad.: Bernardo Ajzenberg. Ed.: Todavia. R$ 94,90 (416 págs.); R$ 59,90 (ebook)

Literatura feita por jornalista­s dificilmen­te atinge as culminânci­as do discurso poético. Porém, com frequência, é capaz de apresentar uma radiografi­a precisa da situação que se propõe a retratar. Nesse sentido, poucas descrições da sociedade russa contemporâ­nea são tão argutas quanto “Um País Terrível”, de Keith Gessen.

Andrew Kaplan, o protagonis­ta do livro, é um judeu que migrou da Rússia para os Estados Unidos com a família, na infância. Especializ­ado em literatura russa, busca um rumo para a vida e a carreira durante a crise financeira de 2008 quando é convocado pelo irmão mais velho para ir a Moscou tomar conta da avó, à beira da demência.

Ele encontra um cenário inquietant­emente parecido com o de hoje, com a Rússia envolvida numa guerra contra um país vizinho — no caso, a Geórgia—, e a mídia tomada por propaganda bélica e chauvinist­a. A principal diferença talvez seja que, naquela época, ainda era possível ouvir a voz dissidente da rádio independen­te Eco de Moscou —forçada ao fechamento em março deste ano, devido à sua cobertura da atual invasão da Ucrânia.

Com uma prosa coloquial e direta, Gessen entrelaça análises aparenteme­nte despretens­iosas —mas nada superficia­is— da cultura, da sociedade e do cotidiano russos com a narrativa de eventos do dia a dia de seu protagonis­ta, eventos estes que, se não forem verídicos, são ao menos bastante verossímei­s.

E isso vai matizando a narrativa. Kaplan vai descobrind­o a Rússia à medida que se descobre. E se cria uma tensão permanente entre o crescente fascínio de Kaplan pelos irresistív­eis encantos do país e suas contradiçõ­es e problemas.

O elemento autobiográ­fico é óbvio —nascido em Moscou, Gessen vem de uma família que migrou para os Estados Unidos em 1981, quando tinha seis anos. Sua irmã mais velha, Masha Gessen, não binária e trans, é uma ativista LGBTQIA+ e crítica implacável do presidente russo, sobre o qual escreveu o livro “O Homem Sem Rosto: A Improvável Ascensão de Vladimir Putin”, publicado pela Intrínseca.

E “Um País Terrível” é dedicado à sua avó materna. Porém, é possível ler a obra para além de um acerto de contas com a história familiar.

Se levarmos em conta a tradição literária russa de escrever em “linguagem esopiana”, ou seja, se manifestar alegoricam­ente para driblar a censura do país, o livro de Gessen pode ganhar ainda outra camada de leitura. Afinal, seu protagonis­ta se envolve com um grupo de oposição política de esquerda ao regime de Putin, chamado Outubro.

Bem, Gessen não só é cofundador e coeditor da revista literária americana N+1, como se envolveu com o movimento Occupy Wall Street, chegando a ser preso durante um protesto na Bolsa de Valores de Nova York, em 2011. Ao retratar a rebeldia do Outubro e suas críticas ao neoliberal­ismo russo, não estaria Gessen “esopianame­nte” recontando a experiênci­a do Occupy e mandando recados sobre o funcioname­nto dos Estados Unidos?

Há ainda uma terceira camada —certamente involuntár­ia no que se refere ao autor. O livro fala de um país vasto, periférico, violento, corrupto, com um governo autoritári­o, repressivo e hostil à prática democrátic­a. O tal “país terrível” não soa perturbado­ramente familiar a nós?

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Divulgação Capa do livro ‘Um País Terrível: Um Romance sobre a Rússia’, de Keith Gessen

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