Folha de S.Paulo

‘Doze Césares’ faz análise nerd e saborosa do poder dos romanos ao século 20

- Reinaldo José Lopes

Doze Césares: Imagens de Poder do Mundo Antigo ao Moderno ★★★★☆ Autora: Mary Beard. Trad.: Stephanie Fernandes. Ed.: Todavia. R$ 119,90 (464 págs.); R$ 69,90 (ebook)

Para quem não sabe quase nada sobre os imperadore­s romanos, “Doze Césares”, da historiado­ra britânica Mary Beard, talvez não seja a mais didática das introduçõe­s.

Não espere encontrar no livro resumos simples e claros das trajetória­s de Augusto, Nero ou Calígula. Em vez disso, a obra de Beard apresenta uma análise deliciosam­ente nerd da maneira como as imagens dos césares moldaram as percepções que temos sobre poder e prestígio nos últimos 2.000 anos.

A abordagem é capaz de iluminar muitos aspectos do Império Romano mesmo sem detalhar os feitos de cada um dos autocratas que o regeram. Mas os raios de luz que ela lança atingem com intensidad­e similar períodos bem posteriore­s, como a Renascença, o século 19 e os anos 1930.

Afinal de contas, o ato de retratar os imperadore­s ou mesmo de fazer uma lista canônica dos senhores de Roma sempre foi um reflexo de como diferentes sociedades enxergavam a si próprias.

Foi só por meio de consideráv­el licença poética, aliás, que os 12 césares do título do livro acabaram sendo entronizad­os na memória dos pósteros pelo historiado­r romano Suetônio, no século 2º d.C.

Acompanhar as transforma­ções na imagem pública de cada um dos césares é um jeito de entender o Ocidente, pois eles se inseriam em diversos aspectos da vida de seus súditos. Se o mais óbvio hoje é imaginar que eles eram retratados apenas em bustos de mármore imaculado, essa ideia ignora a paixão do mundo antigo pela decoração colorida e a predominân­cia da arte portátil em elementos do cotidiano.

Retratos, decorações de marfim em joias, moedas e até forminhas de biscoitos eram testemunho­s disso tudo.

A onipresenç­a do rosto do imperador era tão importante quanto uma estátua equestre.

É de se imaginar que alguma forma de controle do poder central ajudasse a padronizar a imagem de cada imperador. Um dos indícios mais interessan­tes disso, conforme aponta a historiado­ra britânica, é o fato de que os membros da primeira dinastia imperial, a júlio-claudiana, não são muito fáceis de diferencia­r, em especial no caso dos primeiros césares.

Augusto, brinca ela, estabelece como padrão uma espécie de retrato de Dorian Gray às avessas. Enquanto o Dorian Gray criado pelo escritor irlandês Oscar Wilde permanece perpetuame­nte jovem enquanto seu retrato envelhece, “Augusto, até sua morte em 14 d.C., beirando os 80 anos, foi retratado como um rapaz”, escreve Beard.

É por isso que, muitas vezes, fica difícil distinguir o fundador da dinastia de seu enteado, filho adotivo, genro e sucessor, Tibério, ou do sucessor deste, Calígula (bisneto de Augusto). Na forma de mármore, todos têm uma beleza clássica genérica, emprestada dos escultores gregos.

Nero, também descendent­e de Augusto, sai um pouco desse script, talvez em parte pela sensibilid­ade “transgress­ora” do jovem imperador. Não que seja fácil identifica­r as imagens de cada um deles, seja na hora de dizer quem é quem, seja na hora de saber se determinad­o busto data do período romano ou é um pastiche do Renascimen­to ou do século 18 da obra antiga.

Além da crônica falta de letreiros, Beard lembra que, durante muito tempo, os antiquário­s ou artistas que recuperava­m estátuas romanas considerav­am completame­nte aceitável o uso de ácidos, polimento ou outras técnicas agressivas que podiam descaracte­rizar o personagem original retratado na obra.

Isso para não falar de uma estátua em que a cabeça do magnata italiano Alexandre Farnésio foi acoplada a um corpo de mármore antigo que talvez, anteriorme­nte, retratasse o imperador Júlio César.

A narrativa de Beard acompanha ainda como pintores abandonara­m a convenção de retratar governante­s ou militares de sua época com trajes de imperadore­s romanos.

Agora, o mundo moderno se tornou incapaz de conciliar imagens de um suposto poder absoluto benevolent­e com seu apreço crescente por valores democrátic­os. Nisso, estamos mais próximos dos romanos anteriores aos césares, que fundavam seu regime republican­o na aversão a qualquer tipo de monarca.

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Reprodução/Artvee ‘The Death of Caesar’, obra de 1804, do artista italiano Vincenzo Camuccini

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