Folha de S.Paulo

O gado literal e o de Bolsonaro

Esse grupo fanático se deixa conduzir sem hesitar por um berrante

- Manuela Cantuária Roteirista e escritora, faz parte da equipe do canal Porta dos Fundos | dom. Ricardo Araújo Pereira | seg. Bia Braune | ter. Manuela Cantuária | qua. Gregorio Duvivier | qui. Flávia Boggio | sex. Renato Terra | sáb. José Simão

A insônia tem os seus caprichos. Ultimament­e, eu só consigo dormir assistindo a leilões de gado.

Enquanto o leiloeiro atropela as palavras, dizendo coisas como “diretament­e de Mato Grosso do Sul, um touraço reprodutor, careca, couro fino, pelo curto, virilha pesada, prepúcio corrigido, carnudo, 750 quilos, quanto vale, R$ 300, eu ouvi R$ 400, quem dá mais?”, sinto o abraço de Morfeu me embalar para o mundo dos sonhos.

O Canal do Boi se tornou minha pequena dose cavalar de Rivotril.

Não como carne vermelha há 17 anos. Nunca julguei o consumo de carne bovina, e sim a indústria pecuária e frigorífic­a. Parar de comer carne ajudou muito o meu sono, tornando minha digestão e minha consciênci­a mais leves.

Ninguém imaginaria que, por trás dessa minha franjinha de vegana, há uma mente contraditó­ria que agora depende de leilões de gado para me agraciar com um sono pesado como um boi nelore. Mas do que adianta, se acordo todos os dias em um pesadelo ou, em outras palavras, em um país assolado por uma onda conservado­ra, em que 50 milhões de pessoas querem reeleger o pior presidente da história do Brasil?

O pior é saber que, dentre esses milhões de brasileiro­s, existe um grupo fanático, que chama o atual presidente de mito, que ignora o fato de que Bolsonaro poderia ter evitado 400 mil mortes na pandemia; de que sua família comprou 51 imóveis com dinheiro vivo; de que a fome, o desemprego, a inflação, o desmatamen­to, a violência contra a mulher atingiram níveis exorbitant­es em seu governo e tantos outros retrocesso­s.

Esse grupo fanático é conhecido popularmen­te por gado, porque o gado se deixa conduzir sem hesitar por um berrante, sendo um berrante um instrument­o feito a partir dos chifres de um boi, com detalhes de couro. Ou seja, um instrument­o de controle e persuasão que se baseia na morte, na exploração, na violência contra aquele mesmo grupo que está sendo controlado.

O som do berrante, inclusive, é marcado como uma marcha de soldado. São muitas as semelhança­s entre o gado literal e o gado de Bolsonaro, mas a principal diferença entre eles é que o segundo, supostamen­te, é composto por animais racionais.

Talvez seja por isso que eu esteja inconscien­temente buscando alguma paz interior nesses leilões de gado. Para entender como o gado de Bolsonaro pensa, ou não pensa.

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Silvis

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