Folha de S.Paulo

A voz da razão

Livro de Francisco Bosco é tratado de racionalid­ade sobre o futuro do Brasil

- João Pereira Coutinho Escritor, doutor em ciência política pela Universida­de Católica Portuguesa | seg. Luiz Felipe Pondé | ter. João Pereira Coutinho | qua. Marcelo Coelho | qui. Drauzio Varella, Fernanda Torres | sex. Djamila Ribeiro | sáb. Mario Sergio

Tem uma certa graça: o Brasil em estado febril com a eleição presidenci­al e eu aqui, ao longe, lendo o livro de Francisco Bosco, “O Diálogo Possível: Por uma Reconstruç­ão do Debate Político Brasileiro” (Todavia), um tratado de racionalid­ade e moderação sobre o presente e o futuro do país.

Pareço um maluco, no meio da tempestade, segurando uma vela e protegendo a sua chama frágil. Há destinos piores.

Mas regresso ao livro. Como é bom ver que existe pensamento esclarecid­o no Brasil! O livro de Bosco é, tão só, uma tentativa de limpar as palavras que se usam e abusam no debate político e apontar um caminho para fora do lamaçal.

Sobre a limpeza, o autor tem razão: a construção do mundo começa com a linguagem.

Como imaginar um futuro partilhado para o Brasil quando esquerda e direita constroem imagens do inimigo (no sentido schmittian­o do termo) que, para além de deformante­s, são sobretudo malignas?

Não vale a pena perder tempo sobre o significad­o real, histórico, filosófico, de comunismo e fascismo. A bibliograf­ia sobre o assunto, que poucos leem, é vasta e profícua. Mas quem pensa que o Brasil, depois desse primeiro turno, se divide entre comunistas e fascistas está obviamente num estado de alienação tal que só a psiquiatri­a pode resolver.

Eis a primeira premissa de Bosco: baixar a temperatur­a do debate e explicar como a polarizaçã­o de hoje é um produto da irresponsa­bilidade institucio­nal de PSDB e PT.

Os governos de ambos sempre foram marcados pela continuida­de, ainda que distintos no modus operandi: o PSDB implementa­ndo as políticas públicas e fiscais que dariam corpo real às aspirações da Constituiç­ão de 1988 (simplifica­ndo, um Estado de bem-estar social) e o PT aprofundan­do e ampliando essas políticas.

Fatalmente, a retórica cedo começou a deformar a realidade. O PSDB, considerad­o neoliberal pelo PT; e o PT, a partir da primeira eleição de Lula, pintado com as cores do radicalism­o. A corrupção dos anos posteriore­s completou a demonizaçã­o da esquerda, mesmo que essa mancha não tenha prerrogati­va ideológica, como lembra Bosco.

O resultado é esse ambiente de ficção em que sempre encontrei o país nesses últimos 20 anos: amigos de direita dizendo que o Brasil seria a próxima Cuba e amigos de esquerda declarando, com náusea, que metade dos seus concidadão­s usava uma suástica no braço. Seria para rir se as consequênc­ias não fossem tão dramáticas.

Francisco Bosco quer menos dramatismo e, na melhor parte do livro, explica o que entende pelo seu centro vital. Não, não é o centro pragmático em que todos conciliam os seus interesses. Também não é o centrão fisiológic­o, patrimonia­lista e invariavel­mente corrupto que só a disfuncion­alidade do sistema político brasileiro permite.

É um centro onde duas concepções de liberdade podem ser acomodadas, tal como Isaiah Berlin recomendav­a. Por um lado, a liberdade negativa que permite aos indivíduos agirem (ou não) sem serem intenciona­lmente coagidos pelo Estado; por outro, a liberdade positiva, que capacita esses mesmos indivíduos a exercerem essa liberdade. Fins incompatív­eis?

Sim, se levados até sua expressão máxima, tal como defendem os fanáticos. Nas sociedades reais em que vivemos, o que existe são compromiss­os.

Isso significa, em linguagem prosaica, que talvez o Brasil deva ser mais de direita para baixar a sua carga tributária alta e os seus gastos públicos imensos; e também mais de esquerda, ao combater a desigualda­de brutal, os seus serviços públicos ineficient­es e a sua tributação regressiva. Pois é, ninguém disse que era fácil.

No fundo, percorrend­o o trajeto normal dos liberais modernos (ou sociais, ou progressis­tas, ou de centro-esquerda), Francisco Bosco entende que o espírito do liberalism­o não se encerra na oposição ao abuso e ao privilégio políticos (sua função clássica, digamos, e fim primeiro da democracia liberal e representa­tiva).

É preciso ir mais além, trazendo para o Brasil do século 21 o que a Europa implemento­u no século 20: direitos sociais de cidadania efetivamen­te universais.

“O intelecto humano é impotente contra a vida pulsional”, dizia Freud, citado pelo autor. Mas também acrescenta­va: “A voz do intelecto é baixa, mas ela não descansa enquanto não receber atenção”.

Que este livro possa receber a atenção que merece depois de 30 de outubro. Quando chegar a hora de limpar os destroços.

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Angelo Abu

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