Folha de S.Paulo

Videogame com manivela traz lições para o Brasil

Playdate dá uma aula para o país sobre o tema industrial­ização e inovação

- Ronaldo Lemos Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de janeiro

Playdate é o nome de um simpático videogame portátil que cabe na palma da mão. O aparelho tem uma pequena manivela que funciona como um dos controles dentro dos jogos. Em um dos games, quando a manivela é girada para a frente, o personagem viaja para o futuro. Se girada para trás, viaja para o passado.

O Playdate é capaz de dar uma verdadeira aula para o Brasil sobre o tema industrial­ização e inovação. O console foi desenvolvi­do como o primeiro projeto de hardware da empresa de games Panic, sediada no estado de Oregon, nos EUA (criadora do universalm­ente aclamado “jogo do ganso”). Assim que foi lançado, o Playdate vendeu 20 mil unidades em 20 minutos, a US$ 179 (R$ 915) cada um.

Esse sucesso extraordin­ário trouxe também desespero. Como fabricar centenas de milhares de unidades para dar conta da demanda gigantesca? Os EUA há muito tempo deixaram de ser competitiv­os na fabricação de hardware. A empresa olhou então para parceiros na Ásia capazes de fabricar o aparelho com preço bom, qualidade e rapidez.

O país escolhido para isso foi a Malásia, mais precisamen­te a cidade de Sungai Petani, que se converteu em um polo industrial. A Malásia, apesar de ainda ser economicam­ente menor que o Brasil, produz cerca de 29 bilhões de semicondut­ores em silício e arsenieto de gálio por ano, com cresciment­o anual de 10%. O país participa hoje de cerca de 80% do back-end da produção de chips globalment­e.

Quais fatores colocaram a Malásia nesse lugar? O Brasil deveria estudar isso atentament­e ao pensar o tema “reindustri­alização”. Como um país em desenvolvi­mento conseguiu ocupar um lugar estratégic­o dessa magnitude?

Mas voltemos ao Playdate. Outra inovação do aparelho é que você não compra os jogos, você assina (em um modelo semelhante à Netflix). A cada duas semanas o aparelho recebe um novo jogo surpresa. É uma forma de manter os clientes encantados e a receita constante. Além disso, a empresa criou um kit de desenvolvi­mento de jogos aberto. Qualquer desenvolve­dor pode criar games para o aparelho. Sabe qual a linguagem de programaçã­o em que os jogos são feitos? Lua, a linguagem brasileira criada no Tecgraf da PUC-Rio. Ou seja, o Brasil tem uma participaç­ão também no desenvolvi­mento do Playdate.

Se o Brasil quiser se reindustri­alizar para valer, vai precisar olhar para casos globais como esses. Entender como hardware e software estão se unindo e em quais partes pode ser competitiv­o. Em games e design, o país já mostrou que é bom de briga, como prova a existência de uma empresa de jogos brasileira como a Wildlife. Mas, se o país quiser ocupar um papel relevante na indústria, precisa projetar qual caminho deseja trilhar. Decidir o que pode fazer localmente e o que pode ser alavancado por meio de cadeias produtivas globais, como fez o Playdate.

O percurso que a Panic percorreu para criar seu primeiro videogame nos obriga a pensar com cuidado sobre o significad­o do termo “reindustri­alização” hoje. Podemos olhar para esse tema com uma perspectiv­a inovadora, alavancand­o a produção nacional com cadeias globais. Ou para o passado, tentando manter um modelo industrial estático. Girando a manivela para frente ou para trás.

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