Folha de S.Paulo

Nossas crianças e a Onça

Evitar a desgraça nacional indígena depende de nós, ditos bem-intenciona­dos

- Vera Iaconelli Diretora do Instituto Gerar de Psicanális­e, autora de “O Mal-estar na Maternidad­e” e “Criar filhos no Século XXI”. É doutora em psicologia pela USP

Micheliny Verunschk retrata, em sua premiada obra, a viagem do zoólogo Johann Baptist von Spix e do botânico Carl Friedrich von Martius ao Brasil em 1817 para uma expedição científica. Na volta para a Baviera levaram na bagagem duas crianças indígenas. Um menino do povo Juri e uma menina do povo Miranha. Foram levadas para serem estudadas, catequizad­as, aculturada­s e expostas em feiras, como se fazia muito na época. As crianças morreram poucos meses depois de chegarem a Munique em decorrênci­a do contato com doenças comuns de brancos.

“O Som do Rugido da Onça”, ganhador do Jabuti 2022, já seria um livro obrigatóri­o por suas qualidades histórico-literárias e por sua narrativa arrebatado­ra —deixe o lenço à mão. Mas ele se torna ainda mais imprescind­ível por nos ajudar a pensar a atual situação de nossas crianças, passados mais de 200 anos.

Verunschk deu alma à Martius e Spix, retratando o primeiro como um cientista ganancioso, ávido por glória e dinheiro, e o segundo como escrupulos­o, mas fraco, incapaz de dar voz à sua contraried­ade de levar as crianças.

Ambos chafurdam nas crenças de seu tempo, que incluem a certeza de que os “selvagens” precisam ser salvos pela boa religião e inseridos nos costumes europeus, estes, sim, dignos da humanidade. Tanto faz se a Europa àquela época já estivesse sob os efeitos da devastação ambiental, social e moral decorrente da Revolução Industrial, na qual mulheres e crianças trabalhava­m sem descanso em fábricas insalubres para levar uma vida miserável.

Tampouco parecia importar que a religião do século 19 fosse herdeira direta das torturas e queima de infiéis nas fogueiras da Inquisição. O que importava era continuar acreditand­o no ideal Iluminista de racionalid­ade, que nos salvaria de sermos selvagens e pagãos como os indígenas brasileiro­s.

Levaria algumas décadas ainda para a rasteira que Freud daria no narcisismo do homem ocidental ao demonstrar que ele não é senhor em sua própria morada, sendo regido pelo determinis­mo inconscien­te. Freud era um iluminista, mas advertiu a humanidade dos limites da razão.

Verunschk descreve o arrependim­ento desses dois cientistas por terem tirado duas crianças saudáveis de junto de seus familiares para assistirem impotentes a elas morrerem sob seus cuidados. A autora inclui no livro a rainha Karoline da Baviera, que, tendo perdido ela mesma uma criança, também teria sofrido com a morte dos dois indígenas. É claro que se elas tivessem sobrevivid­o dificilmen­te os sequestrad­ores capitulari­am.

Como Spix, retratado como supostamen­te bem-intenciona­do —de acordo com os valores de seu tempo—, pôde ser conivente com uma monstruosi­dade dessas? A resposta passa pela crença íntima e inabalável de valer mais do que o outro. O carinho pelas crianças mal disfarça a arrogância de se achar melhor do que elas. Passa também por estar de acordo com valores de seu tempo sem questioná-los.

Já do lado de Martius, temos essa arrogância acrescida de ganância e má-fé, lugar onde a maldade humana faz a festa. Passados 200 anos, estamos aí, numa repetição que não cessa, insistênci­a infinita em repudiar a alteridade, fingindo que há como sobreviver­mos dentro dessa lógica que faz valer alguns mais do que outros.

O governador de Roraima, Antônio “Denarium” (nascido Almeida se rebatizou de “Dinheiro”), junto com seu ex-presidente e todos os que por ação e omissão promovem e prolongam a desgraça nacional, está “sob os olhos da onça”. Se ela vai pular no cangote deles a tempo depende do que nós, que nos dizemos bem-intenciona­dos, fizermos pelas nossas crianças.

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