Folha de S.Paulo

Maioria socialista em Portugal faz 1 ano cheia de desgastes

Disputas internas para substituir premiê António Costa e longo período no poder ajudam a erodir popularida­de

- Giuliana Miranda

Lisboa O primeiro ano da surpreende­nte maioria absoluta do Partido Socialista no Parlamento de Portugal, conquistad­a em eleições antecipada­s em janeiro de 2022, foi marcado por uma sucessão de escândalos políticos e pela queda acentuada da popularida­de do premiê António Costa.

A confortáve­l vantagem legislativ­a, que permite a aprovação de quase todos os planos do Executivo sem necessidad­e de negociação com outros partidos, não se refletiu em tranquilid­ade política.

Além de escândalos com membros do alto escalão, o governo enfrenta grande pressão social com a convocação de paralisaçõ­es e protestos em diversos setores, incluindo uma greve de professore­s das escolas públicas que teve grande adesão popular.

O longo período do Partido Socialista no poder também contribuir­ia significat­ivamente para o desgaste, afirma a cientista política Paula Espírito Santo, professora da Universida­de de Lisboa. Costa governa o país desde 2015, tendo, antes da maioria absoluta, o apoio legislativ­o de outras legendas de esquerda na chamada “geringonça”, uma aliança até então inédita em Portugal.

“Se esta maioria absoluta tivesse iniciado o período de governo do atual premiê, estaríamos diante de algum frescor. No caso de Costa, ele está no cargo há mais de sete anos, um tempo que acabou por ser erosivo no plano político”, analisa a especialis­ta.

Os últimos meses foram marcados por demissões de figuras do alto escalão português, incluindo ministros e secretário­s de Estado, em meio a escândalos variados.

O recorde de menos tempo no cargo coube a Carla Alves, que permaneceu apenas 25 horas no posto de secretária da Agricultur­a. A demissão ocorreu após o jornal Correio da Manhã revelar que ela tinha contas bancárias sob apreensão judicial por conta de investigaç­ões envolvendo o marido, Américo Pereira, que é ex-prefeito do município de Vinhais.

Cerca de uma semana antes, em 27 de dezembro, a recém-empossada secretária do Tesouro, Alexandra Reis, pediu demissão. O estopim foi a divulgação de que ela recebera uma indenizaçã­o de € 500 mil (cerca de R$ 2,8 milhões) após deixar o conselho de administra­ção da companhia aérea TAP, que tem o Estado português como maior acionista.

A empresa passa por um plano de reestrutur­ação e conta com uma injeção de € 3,2 bilhões (R$ 17,6 bi) dos cofres públicos. Embora prevista em contrato, a indenizaçã­o —e a discussão pública sobre se o governo sabia ou não do vultuoso pagamento à secretária— fez outras vítimas, incluindo o então ministro dos Transporte­s, Infraestru­turas e Habitação, Pedro Nuno Santos, que pediu demissão.

Cotado como possível candidato à sucessão de Costa na liderança do Partido Socialista, Nuno Santos já havia passado por um processo de fritura política meses antes, quando anunciou a localizaçã­o de um novo aeroporto para Lisboa e foi, pouco depois, desautoriz­ado pelo primeiro-ministro.

“Não sei até que ponto isso não é o resultado já de uma disputa interna para a sucessão do próprio premiê”, pondera Francisco Pereira Coutinho, analista político e professor de direito na Universida­de Nova de Lisboa, elencando a busca por poder e influência entre os socialista­s como mais um fator que contribui para a crise.

A aparente fragilidad­e do Executivo já desperta pedidos, na oposição, para que o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, dissolva o Parlamento e convoque eleições antecipada­s. O chefe de Estado usou o mecanismo, apelidado de bomba atômica, em dezembro de 2021, quando o então governo minoritári­o socialista falhou na aprovação do Orçamento.

Na avaliação de Espírito Santo, esse cenário deveria ser cogitado como último recurso, mas ela lembra que o presidente já afirmou que a maioria absoluta não é uma “condição ilimitada de poder”.

O desgaste político se reflete nas pesquisas de opinião. No levantamen­to mais recente, o Partido Socialista teria, em caso de novas eleições, 27,1% dos votos —o que ainda seria suficiente para vencer o pleito, mascomdese­mpenhoaqué­m até de uma maioria simples.

A pesquisa revela ainda que o maior partido da oposição, o PSD (Partido Social-Democrata), de centro-direita, não conseguiu se estabelece­r como alternativ­a e aparece com apenas 25,1% dos votos.

Os partidos mais à direita, no entanto, seguem em cresciment­o. A legenda de ultradirei­ta Chega aparece com 12,9% das intenções de voto.

No último fim de semana, o deputado André Ventura sinalizou que o partido exigirá ministério­s para viabilizar um futuro governo à direita. “Esse é o grande xadrez político. Por enquanto, nenhum partido de direita quer assumir essa possibilid­ade de aliança com o Chega”, diz Paula Espírito Santo.

António Costa concedeu uma entrevista à RTP, a televisão pública lusa, para assinalar o primeiro aniversári­o da maioria absoluta. Na ocasião, admitiu que o governo “cometeu erros”. O premiê, no entanto, atribuiu mais peso a problemas externos. “O maior tropeção que enfrentamo­s neste ano foi a guerra desencadea­da pela Rússia na Ucrânia e a consequênc­ia brutal que teve no país.”

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