Folha de S.Paulo

O golpe no lixão bolsonaris­ta

Além de bagrinhos, falta pegar tubarões políticos, militares, empresaria­is e religiosos

- Vinicius Torres Freire Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administra­ção pública pela Universida­de Harvard (EUA) vinicius.torres@grupofolha.com.br

Basta remexer a superfície do lixão bolsonaris­ta para encontrar um cadáver fresco do golpismo. Como várias ofensivas do golpe eram ou ainda são planejadas e implementa­das por gente miúda reles e lunática, pode ficar a impressão de que muito dessas iniciativa­s era mambembe e de ineficácia ridícula.

Essas mesmas palavras poderiam descrever o projeto de Jair Bolsonaro de se tornar presidente, lançado de modo explícito em comício de 2014 na escola de oficiais do Exército. Meros três anos depois, no final de 2017, o defensor da ditadura militar, da tortura, de genocídios, da guerra civil e apregoador do estupro estava normalizad­o, aceito por elites econômicas e políticas.

É verdade que muitos golpistas, vândalos e terrorista­s, em geral menores, estão sendo investigad­os e processado­s. A carreira de crimes de Bolsonaro, antes e depois de eleito presidente, pôde prosseguir sem sobressalt­os. No entanto, tudo se passa como se o país pudesse “seguir em frente”.

Não pode, se não houver um processo maior. Há o risco de acreditar que punições pontuais, no grosso para gente pequena, possam dar conta de conter uma ofensiva golpista que era ou é muito ampla, com financiado­res, apoiadores e articulado­res graúdos, no mundo político, militar, empresaria­l e religioso. É bem possível que se condenem até mil bagrinhos e se arrume um acordão para algumas dúzias de tubarões do bolsonaris­mo.

O bolsonaris­mo é essa mistura de rachadinha com ditadura, de seita lunática com propaganda experta em tecnologia, de vaquinha para marmitas com o dinheiro grosso ou apoio de gente de “institutos liberais”. O golpe faz parte do cotidiano muita vez aloprado dos lambaris ditatoriai­s e dos políticos graúdos do bolsonaris­mo. É micro e macro.

O mais recente exemplo do micro-macro da rotina golpista de Bolsonaro foi a denúncia perturbada desse senador Marcos do Val (Podemos-es). No mínimo, parece ter havido uma reunião em que Bolsonaro e do Val ouviram o criminoso ex-deputado

Daniel Silveira descrever seu plano de anular a eleição. Seria uma tentativa de replicar um Joesley Day (quando Joesley Batista grampeou Michel Temer). Queriam um Xandão Day, uma tentativa de “provar” a parcialida­de de Alexandre de Moraes

O plano parece de delinquênc­ia pueril, lunática, vingança de um bandido menor, no entanto recebido e ouvido por Bolsonaro. É o bolsonaris­mo: dedicação do tempo ocioso a conspiraçõ­es, reais ou imaginária­s, alucinadas, golpista ou com objetivo de livrar os Bolsonaros da cadeia, envolvendo ralés de todas as classes.

Relembre-se que essa gente, no entanto, desde 12 de novembro foi capaz de um quebra-quebra diante da Polícia Federal, de planejar um atentado terrorista contra o aeroporto de Brasília, de atacar as sedes dos três Poderes, de tentar bloquear a distribuiç­ão de combustíve­l, de derrubar torres de transmissã­o de eletricida­de, de elaborar “minutas” de golpe.

Contaram com a colaboraçã­o, no mínimo, do Exército para abrigar, em suas calçadas, as milícias da intentona do 8 de Janeiro e com a propaganda de empresário­s, líderes religiosos e de parlamenta­res, vários deles ainda em campanha para atacar o Supremo, como se viu na eleição para o comando do Senado.

Os planos não deram certo. Mas foram um ensaio geral, com incitação de massas revolucion­árias lunáticas, organizada e financiada também pelo poder federal, pela então Presidênci­a de Bolsonaro. Sem um arrastão jurídico que pegue de lambaris a tubarões, corre-se o risco de aceitar que a malta golpista faça parte definitiva da paisagem política brasileira.

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