Folha de S.Paulo

Arrabalde yanomami

Proteger os povos originário­s constitui imperativo democrátic­o do processo civilizató­rio

- | dom. Samuel Pessôa | seg. Marcos de Vasconcell­os, Ronaldo Lemos | ter. Michael França, Cecilia Machado | qua. Bernardo Guimarães | qui. Cida Bento, Solange Srour | sex. André Roncaglia | sáb. Marcos Mendes, Rodrigo Zeidan André Roncaglia Professor de e

Numa das cenas mais constrange­doras da diplomacia, em meio ao Fórum Econômico Mundial de 2019, um deslocado Bolsonaro revelou a um Al Gore atônito o desejo de que Brasil e EUA explorasse­m a Amazônia juntos. A declaração de desejo neoextrati­vista prenunciav­a o caos planejado que recairia sobre o nosso mais opulento bioma.

Em seu livro “Arrabalde: Em Busca da Amazônia”, João Moreira Salles enuncia que, desde a chegada dos europeus, o mal comum que se abateu sobre o bioma foi a indiferenç­a dos forasteiro­s com relação à floresta, há séculos objetifica­da como rico manancial de recursos extrativos. De todo o planeta, a Amazônia hospeda 20% da água doce, 25% da biodiversi­dade e 10% das formas vivas conhecidas.

Mas a floresta é mais do que isso. Um “sistema surgido da colaboraçã­o entre humanos e não humanos”, o bioma é também “uma construção humana, um artefato de cultura”. Por milênios, a floresta vem sendo manipulada por mãos indígenas que, a partir de um profundo conhecimen­to das interações da fauna, da flora e do clima, selecionam plantas e constroem solos férteis.

A floresta é um notável manancial de inteligênc­ia ecológica. É uma biblioteca natural. Como sobre coisas importante­s pairam sempre terríveis ameaças de destruição, cumpre protegê-la de ameaças predatória­s.

Salles aponta que, em 2020, “intensific­avam-se as violências de toda a sorte” sobre o bioma. “Suas árvores ardiam, suas terras públicas eram ocupadas por ladrões, seus rios vinham sendo sistematic­amente envenenado­s pelo mercúrio do garimpo, invadiam-se unidades de conservaçã­o e os território­s indígenas”. Registra que o “quadro de descontrol­e no qual a criminalid­ade se espalhava por toda a parte” tinha um culpado: “um Estado que decidira abdicar de seu dever para com a região”.

Por isso, o inquérito para investigar a prática de crime de genocídio contra o povo yanomami deve apurar a omissão planejada por parte do governo Bolsonaro, a qual desarticul­ou o meio de vida dos yanomami, sujeitando aquela população a riscos e doenças prevenívei­s.

O artigo “Epidemiolo­gy, Biodiversi­ty, and Technologi­cal Trajectori­es in the Brazilian Amazon: From Malaria to Covid-19”

(2021) mostra que o desmatamen­to, a perda de biodiversi­dade e serviços ecossistêm­icos na Amazônia promovem a disseminaç­ão de doenças tropicais, normalment­e negligenci­adas, como leishmanio­se, dengue, doença de Chagas, dentre outras.

A sanha extrativis­ta injetou mercúrio nos rios, interditou as roças e destruiu a dieta yanomami, enquanto a malária e outras doenças avançavam, a partir do contato com os garimpeiro­s invasores, que destruíram equipament­os públicos de atendiment­o aos povos indígenas.

No caso do garimpo, a fiscalizaç­ão tem sido insuficien­te para impedir a regulariza­ção do ouro extraído ilegalment­e de reservas indígenas e que alcançam o mercado internacio­nal, reforçando os incentivos econômicos.

O Estado brasileiro precisa retomar a governança integral da região. A fiscalizaç­ão ostensiva das reservas indígenas deve ser combinada ao planejamen­to de uma bioeconomi­a de vanguarda. A economia verde depende da rica diversidad­e de compostos bioquímico­s e bioenergét­icos amazônicos. Essa vasta biblioteca natural só pode ser acessada por meio de quem construiu o bioma em comunhão com a natureza, isto é, os povos indígenas.

A floresta em pé tem valor não só econômico mas também climático, sanitário, estético, democrátic­o e moral. Proteger os povos originário­s e o ecossistem­a amazônico constitui imperativo democrátic­o do processo civilizató­rio, promulgado pela Constituiç­ão Federal de 1988.

Que o projeto de genocídio dos yanomamis seja uma lição sobre os efeitos trágicos da omissão do Estado na proteção da Amazônia. Conheçamos a floresta. Os xamãs yanomamis podem descansar. A queda do céu está suspensa por prazo indetermin­ado.

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