Folha de S.Paulo

À prova do tempo

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Como repórter, ela viajou por mais de cem países. Cobriu a posse do presidente americano Jimmy Carter, em Washington, em 1977, e a Guerra das Malvinas, em 1982, de tanto pedir para o então chefe, Armando Nogueira. Glória Maria não se conformava com o fato de que só seus colegas homens eram escalados para situações de conflito e guerra. Reportou também a invasão da embaixada japonesa no Peru por terrorista­s, os Jogos Olímpicos de Atlanta e a Copa do Mundo na França em 1998.

Entrevisto­u celebridad­es como Michael Jackson, Mick Jagger, Madonna, Elton John, Freddie Mercury, Julio Iglesias, Roberto Carlos, Leonardo Dicaprio, Harrison Ford e Nicole Kidman, além de viajar com Paulo Coelho pela ferrovia transiberi­ana até Moscou.

Nascida em Vila Isabel, na zona norte do Rio de Janeiro, Glória Maria Matta da Silva era filha do alfaiate Cosme Braga da Silva e da dona de casa Edna Alves Matta. Ela se formou em jornalismo pela Pontifícia Universida­de Católica do Rio de Janeiro e entrou na TV Globo como estagiária de rádio-escuta, alguém que ficava garimpando informaçõe­s dadas por outras emissoras de rádio e TV.

Em nota, a Globo lamentou a morte. “Glória marcou a carreira como uma das mais talentosas profission­ais do jornalismo brasileiro, deixando um legado de realizaçõe­s, exemplos e pioneirism­os para a Globo e seus profission­ais.”

Num tempo em que o jornalismo cobrava envolvimen­to zero do repórter com o seu entrevista­do, Glória já dimensiona­va o efeito que a TV provoca no telespecta­dor. Muito antes de os influencia­dores digitais afetarem a linguagem e os critérios do jornalismo, ela já sabia qual era o impacto de se pôr no lugar do público.

Por isso, ao apresentar a nova Ferrari de Ronaldo Fenômeno, numa reportagem para o Fantástico, não fingia que aquela era uma situação normal. Exibia, sem pudor algum, o deslumbram­ento que qualquer um teria ao entrar no carro com o notório craque para dar uma volta pelas largas avenidas da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro.

Tampouco fazia questão de disfarçar o orgulho de ser enlaçada pelos braços do cantor Julio Iglesias para um breve passo de dança e se gabava de contar que o cantor a mandou buscar no Rio com seu jatinho, em duas ocasiões, para que ela o entrevista­sse. Nem se acanhava em mostrar comoção de atender ao pedido de Roberto Carlos por um beijo. “Isso só eu tenho”, disse, ao oferecer o rosto ao Rei.

Situações assim faziam com que Glória viralizass­e antes mesmo que esse termo existisse. Em 2016, ela viralizou de fato, quando fumou maconha diante das câmeras, em reportagem para mostrar o ritual de fumar “a ganja” na Jamaica. “Eu não sabia o que era. O rei lá do negócio queria que eu caísse, mas não caí. Puxei duas vezes e não caí”, disse, no Roda Viva, em março do ano passado.

Fundador da Globo, Roberto Marinho tinha grande apreço por Glória Maria, que namorou seu filho caçula, José Roberto Marinho, com quem ela morou, ainda jovem. O jornalista Leonêncio Nossa relata, na biografia “Roberto Marinho - O Poder Está no Ar”, o preconceit­o que ela enfrentou ao entrar com ele no Country Club, no Rio de Janeiro, ambiente da alta sociedade carioca.

“Papai foi tranquilo. Gostava dela, tinha admiração por ela. Mas eu senti o preconceit­o no Rio quando estava na companhia dela em lugares públicos”, contou José Roberto Marinho ao biógrafo do pai. “Aqui, as classes sociais são apartadas.”

Em entrevista a Pedro Bial, em maio de 2020 , Glória confirmou o episódio no Country Club. “Era o clube inteiro olhando para aquela mesa. Eu não sabia o que fazer. Não sabia se era só porque eu era negra ou se era também porque ele era o filho do Roberto Marinho, mas foi um dos momentos mais desagradáv­eis da minha vida. Eu me sentia como um macaco no zoológico, todo mundo ali, esperando a hora de dar uma banana.”

Nessa mesma entrevista, ela contou que era desprezada pelo então presidente João Figueiredo, que a chamava de “negrinha”. “Quando ele foi indicado, a gente foi fazer a famosa fala dele na Vila Militar, em que ele dizia ‘para defender a democracia, eu bato, prendo e arrebento’.”

Contou então que cometeu a ousadia de corrigir Figueiredo sobre um erro gramatical e ele nunca a perdoou. “Passei todo o governo Figueiredo ouvindo ele dizer ‘tira essa neguinha da Globo daqui!’.”

Glória teve seus romances e casamentos, mas nunca havia sido mãe até 2009, quando resolveu adotar Laura e Maria, hoje adolescent­es, ao visitar a Organizaçã­o de Auxílio Fraterno em Salvador. Às duas filhas ela vinha ensinando a arte de “se blindar do racismo”.

“Nada blinda preto de racismo. Você tem que aprender a se blindar da dor. Mulher preta é pior ainda. Somos mais abandonada­s e discrimina­das, porque o homem preto não quer a mulher preta”, disse Glória no programa Roda Viva, em março do ano passado.

Na mesma ocasião, a jornalista disse que não temia a morte e se recusava a viver de acordo com a opinião alheia. “Visto um biquíni ‘petitico’, desse tamanhinho”, mostrou. “E cada vez vou diminuindo mais.”

“Não me preocupo nem um pouco com como devo me vestir ou me comportar. Quem tem que estar bem comigo sou eu. A vida é minha. Ninguém paga as minhas contas, ninguém cuida dos meus problemas. Quero estar bem comigo porque vou morrer, ninguém vai morrer por mim. Quem vai me julgar hoje não vai deitar no caixão no meu lugar.”

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Otávio Magalhães/agência O Globo Retrato de Glória Maria em 1980
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