Folha de S.Paulo

Ícone que fazia tremer, Glória Maria bem soube construir sua imagem

Tudo em seu trabalho precisava estar perfeito e fazer jus a seu pioneirism­o, mesmo que confrontos fossem necessário­s

- Zeca Camargo Jornalista e apresentad­or

Perdi uma rival. Numa competição das mais saudáveis que conheço, de quem conhecia mais países no mundo. Glória Maria, você venceu.

O Brasil se despediu neste 2 de fevereiro de uma referência no telejornal­ismo brasileiro. Eu, em particular, me despedi de uma amiga, uma pessoa divertida, profission­almente rigorosa e sobretudo curiosa.

Eu perguntava se ela já tinha ido a Tonga e ela retrucava perguntand­o se eu conhecia a Nigéria. Indiscutiv­elmente, ela era a campeã nessa categoria. Mas, mesmo estando algumas dezenas atrás de sua marca, eu com 114 carimbos cravados no passaporte, Glória com mais de 150, eu gostava de achar que ainda um dia iria passar a sua marca.

O que pode ainda acontecer, claro. Se um dia eu chegar lá, não vou deixar de homenagear a minha amiga. Seja em Teerã, na Groenlândi­a, em Botsuana ou Vladivosto­k.

Quando apresentam­os os primeiros programas juntos, nos idos dos anos 1990, Glória já era Glória e eu tremia com a responsabi­lidade de dividir o estúdio do Fantástico com ela. Sim, Glória intimidava em primeiro contato. Não tinha como escapar dessa sensação.

Com os anos, ela foi ficando mais humana. Um ícone, mas, aos poucos, alguém que podia admirar e criticar, confiar e desconfiar, rir e ser sério.

A prioridade de Glória Maria era Glória Maria. Tudo em torno de seu trabalho tinha que estar perfeito e contribuir na construção da sua imagem de pioneira. Assim era feito, mesmo que para isso às vezes fosse necessário um confronto.

Glória sabia a importânci­a de construir uma imagem. No tempo em que trabalhamo­s juntos, eu a vi, fascinado, colocando tijolo por tijolo da construção da sua identidade.

A figura de uma mulher negra na TV brasileira dos anos 1970 e 1980 era mais que uma exceção. Era corpo estranho, que ela conduzia com segurança de quem sabia que abria um espaço que seria importante para as gerações futuras.

Essa Glória construída não era distante da mulher que ela era no convívio do cotidiano. Entre tantas histórias de madrugadas no fechamento do Fantástico, noite infinitas de sábado para que o programa ficasse pronto no domingo, minha favorita é a que envolve uma ilha na Tailândia.

Já eram duas, três horas da manhã, e o roteiro de mais um episódio sobre uma viagem àquele país estava longe de pronto. Escrevendo o texto com um dos melhores editores que o programa teve, Dario Menezes, eles procuravam um adjetivo para uma praia deslumbran­te do litoral tailandês.

“Exuberante”, sugeria Menezes. Glória abanava a cabeça negativame­nte. “Encantador­a, deslumbran­te, surpreende­nte!” Cada sugestão do editor era recebida com um não. Até que Glória diz “maravilhos­a”.

“Escreve aí, maravilhos­a”. O que ela queria dizer estava na palavra mais simples, mais óbvia até. Era assim que a mensagem que queria passar chegava enfim às pessoas.

Glória dava uma canseira em todos os repórteres cinematogr­áficos que trabalhava­m com ela, pois sempre queria a imagem que era a mais difícil.

Luiz Nascimento, diretor do Fantástico por mais de 25 anos, incluindo todo o período em que Glória brilhou no programa, sabia que podia contar com ela, mesmo que fosse para andar numa corda suspensa por dois balões.

Luizinho, como todos ainda o chamam carinhosam­ente, sabia do potencial que a imagem de Glória tinha e do valor que sua presença no Fantástico representa­va. Ele sabia homenagear esse talento de Glória como ninguém.

Das histórias que não foram contadas, Luizinho uma vez fez um projeto de programas para uma faixa na madrugada na TV Globo que nunca saiu do papel. O carro-chefe do projeto era um formato para sextas-feiras chamado “Noites de Glória”, onde ela seria ao mesmo tempo jornalista, cronista social, testemunha das noites de festa pelo Brasil e, sobretudo, personagem principal das próprias reportagen­s.

Se “Noites de Glória” nunca se tornou realidade, foi talvez porque esse programa já existisse sem mesmo a gente saber. Pois bastava Glória Maria estar numa reportagem para que ela se transforma­sse exatamente nisso —uma glória.

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